Há fortes evidências em meu corpo

     

    Há fortes evidências no meu corpo.

    Certas marcas foram revisadas e apontam segredos estranhos, achados de infância que a memória teima em atiçar mas não denuncia com a facilidade esperada. 

    A mancha escura no tórax foi de cachaça. Comprei uma garrafa de Tatuzinho para meu pai, na venda da esquina e, lépido, atrevido, amorceguei no estribo de um cadillac, sentindo o vento nos cabelos, a secura na boca e o coração trilitando suas câmaras nas têmporas.

    O cadillac, com a benevolência amiga do seu dono, ondulava pela rua de paralelepípedos, calmamente.

    A aventura se completa num arroubo de ousadia.

    Saltei com o cadillac ainda em movimento, cai, esmaguei a garrafa de cachaça no peito. Feridas, vidro enterrado na carne.

    Cachaça perdida no vão da infância, passo a mão na ferida.

    Mancha preta. Amiga.

    Méier, zona norte, Rio... tarde de fila dos anos sessenta, saúde, mamãe de cenho franzido, minha mão na dela... moça com agulhas de vacina. Mil picadas no ombro direito, sorriso amarelo, dor rápida e sangue pouco. Mamãe, um beijo.

    Meu coração de menino rompe-se, aflorando um coração de homem, que fantasiei desde antes, palpitando na fila, comemorando a coragem que viria.

    Cicatrizes movem-se quando a gente cresce. Minha cicatriz de vacina, antes grande como uma moeda, hoje jaz no meio do braço, quase apagada. Meu coração de homem dentro dela, silencioso.

    Um homem de trinta anos pode se dizer feliz. E eu era.

    Pendurava meu filho de cinco anos pelas mãos, levantava-o e rodopiava seu corpinho para trás, como fazem os trapezistas. Ele era feliz e sabia, pedia mais e pedia mais e pedia mais...

    Um homem de trinta anos também se cansa e, sorrindo e falando, demonstrei a ele que a brincadeira tinha seu final. Ira, um chute na canela, sapato de bico.

    Fiquei olhando aquela tempestade de gente, cerrando os dentes, brilhando os olhos diante de mim, a dor crescendo, a perplexidade superando a dor... Um enorme galo no meio da canela mostrava que um vaso havia rompido.

    Ele, ainda no suor da ira, olha meu ferimento e mareja os olhos.

    Eu, piorado do sentimento, abracei-o e choramos juntos.

    Marcas ficam no corpo. São feridas que o tempo acaricia.

    No espelho procuro marcas da alma, penetrando no próprio fundo através dos olhos.

    Essas marcas não as identifico. Misturaram-se nos compartimentos do eu, invadindo tudo.

    Eu as sinto quando algum medo estúpido aflora o juízo, quando me emociono com imagens de filmes e letras de música. 

    Há mil milhões de avisos nas marcas/feridas que trago comigo.
     
     
     
     
     


 
 
 

Vito Cesar
 
 

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