Não amanhece.
Horas a fio , no fio do horizonte, a espera do sol que desponte... e não
amanhece.
Revejo pontos cardeais, pontos marginais, revertérios da memória, dores
esquecidas ... e não amanhece.
Meu respiro arfante, minha taquicardia, relembro folias de arquibancada,
as alegorias das festas passadas em claro, do jorro de risos de cada
conviva, relembro que a vida era uma história que me contavam e eu ria.
Maria ou Clara ? Qual fora a donzela que despindo-me a farda, lavando-me a
lâmina do sangue da espada, trouxera os bálsamos para minhas feridas? A
batalha se fora, o sabor da vitória, esse cheiro de pólvora preso às
narinas ainda encontra o vício do meu olfato... e não amanhece.
Defendi o forte? Escalei as muralhas? Onde andam meus lordes, fiéis
companheiros de duras pelejas ... as areias estão vermelhas, esvaiu-se meu
sangue? Oh! Queridos companheiros dessa campanha!
Canhões ao mar ! Canhões ao mar! Riscos de ferro no céu da tarde... adormeci
com ferimento de morte, meu sangue ... meu sangue.... porque sobrevivo,
bela donzela?... e não amanhece...
Dá-me a tua mão... coloca-me uma outra vez diante da janela... quero a vigia
do breu e palatar cada fragmento de luz de um sol que é so meu!... mas, não
amanhece!
A minha bandeira! Jaz dilacerada como um trapo, envolve minha perna que
pulsa sozinha, ah!... nada sinto, da ferida, da tragédia, do estorvo ...
apenas a sufocação de lama, de gritos, de sombras dramáticas, de fogo...
Vou ao mar! Necessito ir ao mar!... lavar as sementes de um ódio que já
esqueci, esterelizar o cansaço... Dá-me um beijo, linda donzela... porque
desgrenhada ? porque tão singela?... teu silêncio profano me dilacera....
anda, grita! Porque tu me serves como seu senhor se nem te conheço?
Ah!... minha pátria! Estou plantado em teu solo e não germino!
Vem, minha donzela.... apazigua. Abraça meu corpo sem vestes e diz-me se o
calor ainda me habita! Diz-me se essa guerra fora a guerra dos justos ,
alivia minha consciência... diz-me a quem ou a quê devotei minha espada ...
a batalha foi santa? Quero apoiar-me na justeza das pernas, fincar minha
estatura mais uma vez, fazer o contraste da minha figura ainda viva , entre
os fantasmas que ainda habitam minha memória... dá-me água, princesa ...
dá-me água... tenho essa sede infinda e , ao meu juízo, esconjuro esse
punho que desferiu tantos golpes entre homens e santos!
Sou um homem de ordens! E as cumpro sem a crueldade da dúvida que envolve os
fracos! Mas... por meu Deus! Porque sobrevivo se a morte devora cada
lembrança do meu sentimento! Não tenho mais nada... nem taças de vinho
alçadas ao céu ...
Despe-te, princesa... una-se a mim... deixa-me fincar uma nova semente em
teu corpo de luz... talvez uma nova ordem revele segredos que elimine esse
medo de guerras sem fim...
Meus olhos mentem, minha senhora? Estou cego e não o sei? Onde está o dia
que cisma em não vir?
Estou só, delicada senhora... estou só, sem minhas virtudes, sem
possessões prometidas, sem as alegrias sentidas nas vozes de meus
personagens de alforria.... ah!...
Bastava-me um gemido, um balbucio qualquer, um sinal... para que eu
retomasse o sabor do destino... fica comigo, princesa... fica comigo...