CICLO

              de Pedro Barreto Pereira



    ...domingo de manhã, de um ano qualquer da década de 80. Eu era apenas uma criança e meu programa predileto era ir à praia com minha mãe. Mantinha-me isolado brincando com baldinhos, pazinhas e bonequinhos de plástico. Ouvia ao longe, quase que num sussurro, as tagarelices de minha progenitora e suas amigas a reclamar de suas vidas conjugais, em quase 90% dos casos. Chegando em casa, indagava prontamente a meu pai o significado de palavras como "brochada" e se ele conhecia o tão falado Ricardão, íntimo de todas elas. Papai se fazia de rogado, mas depois ia esclarecer as mesmas dúvidas com sua mulher, que introduzira esse estranho vocabulário na cabeça de um pequeno menino. Passados alguns anos, volto a acompanhá-la em sua ida à praia em virtude de seu aniversário, hábito deixado de lado desde a puberdade As amigas são as mesmas, porém mais velhas, mais surdas e, talvez por isso, com mais problemas (digamos assim) domésticos do que antes, e expondo-os mais alto também. Eu talvez tenha mudado um pouco. Prestava menos atenção ao que elas diziam, ou talvez não me espantasse mais tanto assim. Em vez dos brinquedos comuns à uma criança, concentrava meu pensamento numa matéria que havia saído naquele dia, sobre o ano de 68.

    Lia sobre o absurdo das formas de repressão utilizadas pelos militares, então governantes do país para calar a voz da democracia ecoada pelas cordas vocais de um povo amordaçado e algemado dito subversivo. A lâmina do AI-5 ceifou o ideal de milhares de jovens, como Édson Luiz, estudante morto pela PM do Rio por protestar contra o fechamento do restaurante estudantil Calabouço, que lhe garantia o sustento. No Vietnã, outros tantos jovens morriam em razão de uma guerra sem razão. Contra isso, nos Estados Unidos se organizava um movimento que propunha "faça amor, não faça guerra" e que teve o seu auge no Festival de Woodstock, no ano seguinte. Nesse mesmo país, os Panteras Negras também balançaram os alicerces conservadores e racistas. Na França, estudantes mostram ao mundo que é proibido proibir e clama: seja realista, peça o impossível. Na Tchecoslováquia, canhotos soviéticos erram a mão e passam com seus canhões por cima das flores na primavera.

    Hoje, nos encontramos com legados dessa época. O que eram os cara-pintadas se não reminiscências não vividas dos revolucionários da década de 60? A diferença é que o clima das passeatas de 92 era quase de festa e mostrar o rosto tornou-se motivo de orgulho, caso impensável na época em que ter um livro em casa já transformava um estudante em perigoso revolucionário, subversor da ordem. Na moda, as túnicas indianas e calças boca-de-sino vivem, três décadas depois, seu momento glorioso, como se não houvesse passado um ano sequer desde sua criação. Apesar de vaidosas, as mulheres têm outros motivos para se orgulhar de 1968: se hoje elas podem competir conosco no mercado de trabalho, usar roupas mais ousadas na rua, ou pedir satisfações quando chegamos em casa mais tarde (brincadeira), devem agradecer às mulheres das décadas de 60 e 70, que peitaram os machistas e fizeram assim a sua revolução sexual. Com o avanço da medicina, a difusão do uso de anticoncepcionais lhes garantiu o direito (mais do que justo) de controlar o crescimento demográfico mundial.

    Nossa imprensa também deve muito àquela geração. Estudantes revolucionários franceses, inconformados com as péssimas condições de ensino das universidades da época, lançaram o lema É Proibido Proibir , que se espalhou pelo mundo todo e incentivou a imprensa brasileira. Tiranizados pelos órgãos de repressão do regime vigente, nossos colegas jornalistas lançaram mão da máxima hexagonal e encontraram alternativas para driblar os censores do DOPS. Podemos dizer que foi o período mais fértil de nossa imprensa, sendo caracterizado pelo desenho de um "cálice" na primeira página de um jornal, representando a censura e a ordem que se entendia por "cale-se". A entrevista de Leila Diniz ao Pasquim, rompendo com todas as regras determinadas pelo governo, também marcou pela ousadia, ao publicar palavrões e detalhes intimíssimos revelados pela atriz-símbolo da liberação sexual feminina brasileira. Hoje, a censura ainda existe, só que velada. Quem determina o que deve ou não ser veiculado pelas redes de televisão e pelas páginas de jornal, são os anunciantes e patrocinadores desses meios de comunicação. Em edições de telejornais e em entrevistas de revistas, pode-se deturpar qualquer opinião e criar informações de acordo com os mais variados interesses. Já não existem mais aqueles que criam e dizem nas entrelinhas, o que muitos não dizem em todas as linhas de um livro. As poucas criações estão nas agências de publicidade, a favor dos interesses de poucos e contra os desejos de muitos e únicos interessados na verdade: o público. A hipocrisia impera e apodrece a informação.

    "Apesar de termos feito tudo que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais." Desculpem o plágio, mas me senti na obrigação de recorrer à excepcional cantora para dar um rumo final à minha crônica. O ser humano tem como que uma necessidade, dar voltas e voltas, mudar sua vida e virá-la de cabeça para baixo. Para quê? ................ Para depois voltar ao mesmo lugar de onde saiu, mas na verdade jamais saíra. A alternância entre o simples e o complexo sempre acompanhou este estranho animal em sua história. As experiências são válidas para se ter certeza de que se estava certo desde o início. Seríamos felizes se não tentássemos? Como saberíamos?

    A insatisfação faz parte da natureza humana. Os acontecimentos ao redor do mundo são apenas reflexos do inconsciente em cada um de nós. Talvez por isso a criança seja o estado mais bruto e genuíno de nossa essência, que retomamos na velhice. Nossa vida, assim como a nossa história é um círculo fechado. Para me fazer entender melhor, faço das palavras do poeta, as minhas e declamo: "eu vejo o futuro repetir o passado. Eu vejo um museu de grandes novidades. O tempo não pára."

    Sendo assim.....

    ...domingo de manhã de um ano qualquer da década de 80. Eu era apenas uma criança e meu programa predileto era ir à praia com a minha mãe....





PEDRO BARRETO PEREIRA

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