A quem deixou em mim este gosto de saudade ...

            de Eliane Malpighi


            "Me ensina a me despir sem ter vergonha
            No incêndio dos teus olhos,
            no porto da tua mão,
            no parto da tua vontade."

                Virginia Cavalcanti


    Há em mim ainda o sabor agri doce da tua ausência. Talvez a essência daquilo que não se pode ver, mas que contudo sente-se, ainda que eu não encontre o lugar exato aonde tal conflito se alojou em um ponto qualquer do meu corpo e que espalhou-se pela minha alma e invadiu a minha mente, fixando-se então em meus olhos, agora vazios...

    Ou que na verdade visualizam a expectativa do que ainda precisa acontecer? O que sei - e sinto - é que o teu gosto ainda continua presente em algum lugar de mim, que nunca te pertenci de verdade, mas que te possuiu de tantas inesperadas formas, que hoje são apenas sombras que dançam diante de mim, enquanto continuo deitada sobre a mesma cama de pétalas azuis que construímos para e sob os sonhos que pra sempre haverão de ser nossos. Porém o teu gosto não é mais aquele que me provocava tremores, suores e pigarros. É antes um gosto que chega como um vazio, que na verdade nunca chegou a ser preenchido.

    Houve sim o toque das bocas quentes, ávidas e úmidas, e foi bom. Trouxe prazer, invadiu lugares outros e provocou incêndios tantos. Contudo, não chegou a fundir as almas, talvez porque eu fosse muito menina e você tão homem ainda que em algum lugar de nós houvesse o conhecimento e a certeza, ambos exatos como todos os teus cálculos, desarmados todos eles por meus atos ( insanos? profanos? diáfanos? ), de que eu na verdade sempre fora mulher e você o menino que eu acolhia em meus braços, recolhia dos nossos fracassos e envolvia em minhas carências aflitas.

    E se te escrevo hoje, é porque preciso dizer que esse gosto de ausência tua ainda provoca em mim muito além de uma simples saudade... Afinal, carne maturada que sou, foi com você - menino homem, ainda que mais homem do que menino, que aprendi a beber da poesia que escorre das estrelas e comer do amor que brota da lua minguante, cheia, ou cinicamente de quarto crescente - o quarto que tivemos debaixo do mesmo céu que me dava o arco íris pelo qual eu escorregava para me banhar nas cristalinas águas dos teus olhos profundamente azuis, e que eu julgava tão e só meus, sem saber que os beijos que beijávamos já traziam consigo o sabor desse misto louco e ambíguo de ausência e presença, que na falta de outra palavra, chamo apenas e tão simplesmente de -sabor de você.

    E tudo porque você ainda me visita em horas diversas de cada dia, aspirando o meu perfume e arrancando as minhas roupas pra tocar a minha pele que funde-se de novo e outra vez às cores do poente e do mar, e que me deixa imóvel e alucinada, e que traz de volta a sensação de escancarar o coração e te permitir que novamente devasses os meus sonhos e invadas a minha alma que já translúcida voa por lugares que eu nem sei se quero mesmo conhecer.

    E se continuo o que te escrevo agora é muito mais em razão de saber que talvez eu te habite com uma força ainda mais alucinante e devastadora do que você canta baixo e rouco, como num sussurro de êxtase, enquanto dança suavemente sobre meu corpo suado pelo frio da morte dos encontros secretos que jamais serão apagados pela luz dos teus olhos sobre os meus, dos quais escorre a lágrima que te molha e que ao mesmo tempo te bebe.

    E tudo porque você continua vestido na tua escuridade transparente das noites do inverno frio no qual nos conhecemos e que expôs nossos temores frágeis e cansados enquanto eu estendia meus braços e acolhia tua alma azul inconstante e misteriosa, visível apenas sob a luz da mesma estrela cadente da qual você caiu - ou para onde, na verdade abstrata, partimos e na qual ainda nos encontramos, aprisionados nesta mista embriagues de sedução e fascínio.

    E se ainda insisto em te escrever é porque também insistes em permanecer diante dos mesmos olhos que te aprisionaram e te arrancaram do sonho mórbido em que você vivia, envolto na fantasia que se transformou no gosto absurdo do abstrato que nossas mãos trêmulas e apressadas acabaram por compor e que é esta realidade que hoje nos abriga, paralisando o tempo, rompendo os espaços e iluminando o palco onde os nossos muitos pedaços, fragmentados e cíclicos, aliciam-nos naquilo que jamais poderá ser simplesmente um ontem, e tudo porque tão somente por estarmos assim desarmados e incoerentes, consumidos e exaustos, impressos no vermelho incandescente da tal estrela que se disse ou se fez (de) cadente, penetramos nossos mistérios, pedindo, precisando, desejando e querendo a complexidade de nossas profundezas numa peça que sem intervalos continua misturando nossos cheiros e nossos gosto.

    Tudo assim, a um só tempo manso e rápido como o vento que nos arremessa para o abraço do adeus que nos rende, totalmente voláteis, alterando pra sempre o compasso do etéreo espaço do azul.
    Celeste?




Eliane Malpighi

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