BALANÇOS

              de Newton de Lucca



    Muito sempre se discute e se pergunta sobre o destino. Questiona-se, em suma, se tudo o que nos acontece já está escrito nas estrelas ou se, ao revés, somos nós que fazemos o nosso próprio destino...

    Os sábios já se propuseram a debater esse tema, com nomes mais pomposos do que nós, pobres mortais, o fazemos. Livre arbítrio, determinismo histórico, razão pura, intuição, fatalidade e quejandos foram alguns dos termos utilizados nessa perlenga inútil.

    Sou, na verdade, muito mais singelo em minhas considerações sobre o problema. E, por razões até certo ponto óbvias, jamais me proporia a analisar essa crucial questão sob o enfoque religioso...

    Incapaz de responder, também, a mais essa indagação, limito-me a dizer o que sinto e o que pressinto, sem jamais achar que teria encontrado alguma pólvora ainda não descoberta...

    Percebo que a maioria tende a dizer, por uma espécie de compromisso implícito para com a razão raciocinante, que nós é que somos a causa de tudo o que nos acontece. Aquele velho rifão popular, quem planta vento colhe tempestade, não deixa de ser a expressão dessa maneira de pensar, refletindo aquilo que se costuma designar por livre arbítrio.

    Outras pessoas, porém, impressionadas com a ocorrência de certos fatos — pelo menos aparentemente sem qualquer liame lógico entre o que se plantou e o que se colheu — propugnam pela absoluta desvinculação entre as nossas ações e os nossos propósitos sobre a Terra e os superiores desígnios que regem o assim chamado destino.

    O exemplo que mais me impressionou, nessa segunda visão, foi a história, ouvida quando era ainda bem menino, daquele rei que havia consultado a cartomante, tendo lhe dito esta que em certo ano, numa determinada data, o filho dele haveria de morrer picado por uma serpente.

    O monarca — que na metáfora desse conto deveria encarnar a própria Razão — mandou que se construisse uma inexpugnável masmorra dentro da qual, na época vaticinada, iria colocar o filho.

    Este, porém, inadvertidamente, levou consigo um livro de histórias para que pudesse se distrair durante aqueles dias em que deveria passar inteiramente confinado, sem contato com o mundo exterior.

    Numa dessas histórias, havia o desenho de uma serpente que, para rematar de vez a tragédia do nosso cauteloso e prudente rei, desprendeu-se do papel, vindo a picar, inevitavelmente, aquele real recluso...

    — Quem mandou ele entrar lá com o livro? — resmungou um amigo deste escriba, inconformado com o final da história.

    — Se era para ser previdente, tinha de ser previdente até o final — obtemperaram outros aos quais eu resolvi contar a coisa.

    Quando cheguei aos 50 anos, resolvi fazer uma espécie de balanço de tudo o que tinha me sucedido ao longo da existência e é exatamente disso que estou dando conta agora nessas mal traçadas...

    Embora tudo o que colhi parece ter decorrido rigorosamente de tudo aquilo que plantei, muitas das coisas que apareceram nas minhas mãos vieram, efetivamente, de terras absolutamente inóspitas. Quantas serpentes me picaram venenosamente, mesmo mantendo-me prudente e obstinadamente distante da mata selvagem, já não sei dizer.

    Mas, com toda a certeza desse horrorroso mundo, muito mais do que algumas dezenas, para dizer o mínimo. Terão sido centenas delas, infelizmente, talvez milhares, numa hipérbole já desconsolável...

    Nada mais sem graça, no entanto, do que relatá-las ao leitor, ainda que numa síntese grosseira. Tudo o que posso dizer, então, numa tentativa ainda mais canhestra de resumir todo esse belo imbroglio que é a vida, é que somos todos muito frágeis...De uma fragilidade tão infinita que não somos capazes de escapar de nossas tragédias: nem das que inconscientemente plantamos, nem das que vieram, por determinação invisível, do firmamento celeste...

    Pior do que tudo isso: nem dos nossos próprios fantasmas escapamos...Aliás, com o passar do tempo, aprendi que era inútil ter medo de nossos receios íntimos, pois eles iriam realizar-se, mais cedo ou mais tarde.

    Passei, então, a ter pavor de ter medo, sabedor antecipado de que o medo já passava a ser quase uma dolorosa certeza. Depois, ainda, foi o pânico de viver o pavor de ter medo. Mais posteriormente, foi o estarrecimento de perceber que o pânico de viver o pavor de ter medo apenas me confinava ao labirinto interminável de minha própria tragédia...

    E, depois de tudo isso, a estranha sensação de que se chega ao final, como diria o poeta José Paulo Paes, sem saber qual a sentença que contra nós será lavrada:


    "as perplexidades
    de ainda outro lugar
    ou a inconcebível
    paz
    do Nada."





Newton de Lucca

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