MAELSTRÖM

              de Jorge Nunes



    À branca luz de inverno filtrada pela janela atrás de si, Jean-Baptiste D'Avenerre rabiscava numas folhas amarelecidas não sei que considerações obscuras sobre filosofias mais obscuras ainda. Sobre a larga escrivaninha de carvalho onde escrevia amontoavam-se diversos papéis e livros, alguns deles bastante comprometedores por suas idéias pouco ortodoxas. Apesar do perigo que a posse de tais escritos trazia, a sua curiosidade de estudioso punha abaixo, como um machado afiado, todo o arvoredo de temores que porventura assombrasse Jean-Baptiste.

    À primeira vista, ele parecia concentrado em seu trabalho. Mas quem pudesse penetrar-lhe o espírito naquele momento se surpreenderia com a displicência com que trabalhava, agravada pelo entardecer daquele dia tempestuoso de inverno, que o arremessava num abismo de melancolia indizível. Ao olhar pela janela, de sua cadeira, Jean-Baptiste tinha a impressão de que os torvelinhos de neve que dançavam ao vento lá fora faziam par ao redemoinho atordoante de idéias que tinha rodopiando pela alma. Aqueles ventos levantavam ainda mais a poeira das dúvidas. E como abutres pacientes, essas dúvidas, que se acumulam em todos os que sabem demais, esperavam o momento de se atracar ao espólio de seu espírito, deixando como despojo apenas um fantasma louco na consciência.

    Tentava escrever, mas a pena se lhe emperrava. O que tinha como por absoluto e definitivo quando iniciava uma sentença ia-se demolindo ao longo da frase até que, por fim, adquiria um sentido quase diametralmente oposto à sua convicção primeira. Estava exasperado, e sabia porque. Sabia que pairava sobre sua cabeça um espectro ameaçador: um fantasma, um sinistro estafeta sobrenatural, a trazer a mensagem amarga de que todo aquele estudo era inútil, toda a sua busca vã. Era a angústia de ver ruir todo o seu castelo de idéias, fragilmente construído carta por carta durante um quarto de século.

    Jamais temeu a fogueira ou a tortura. Mais do que essas ameaças, a suspeita de que talvez fosse impossível para o espírito livre o discernimento da realidade do mundo era o seu verdadeiro temor.

    De repente, arremessou a pena, ergueu-se da cadeira bruscamente e foi até a janela. Lá embaixo, por trás das vidraças vibrando ao vento, estendia-se o vale. A nevasca tremenda revertia o mundo ao caos primevo. Árvores desfolhadas e casas esparsas, rios e montanhas, todas as coisas carregavam um contorno impreciso e nebuloso, embaçado pela tormenta, compondo um quadro branco e fantástico. A visão do vale em desalinho fazia um perfeito contraste à imagem plácida do gabine de Jean-Baptiste, forrado de estantes e quadros, mobiliado com simplicidade, onde imperava a grande escrivaninha, cheia de seus papéis e anotações arrumados com cuidado. Um fogo queimava no lar, e o estalo da lenha de quando em quando era o único ruído na sala.

    De pé, em frente à janela, com as mãos cruzadas às costas, Jean-Baptiste de alguma forma percebia que o caos da tempestade continha em suas profundezas alguma ordem misteriosa, algum significado último. Reparou que esse significado era o mesmo em toda a natureza e que ele permeava todas as coisas, ainda que obscurecido pela profusão infinita de signos com que se disfarçava. Mas o decifrar desses signos, entretidos e embolados em suas contradanças de interconexões misteriosas, ele julgava, era uma tarefa demasiado grande para o pequeno espírito humano.

    Jean-Baptiste descruzou as mãos às costas e cruzou os braços junto ao peito.

    Ah, se o decifrar desse Grande Enigma fosse tão fácil quanto a solução dos enigmas infantis dos homens... Ah, se os códigos de Deus fossem tão ingênuos quanto aqueles que usamos para exprimir nossas angústias... Ou se o universo fosse um livro escrito com caracteres estranhos e bizarros, no entanto traduzíveis... Jean-Baptiste não só desvendaria o Grande Enredo, mas também faria parte dele. Início e fim, tempo e espaço, tudo seria dissolvido no oceano da onisciência, e o filósofo, em êxtase transcendental, repousaria enfim sobre o conhecimento último. Assim sonhava Jean-Baptiste.

    Um frio correu-lhe a espinha: não seria essa imagem de repouso eterno semelhante à idéia da morte? E se a verdade última só é encontrada na morte, então viver é cultivar um punhado de equívocos sem valor, é correr atrás do próprio rabo como um cão, é embasbacar diante dos mistérios com perplexidade simiesca.

    Jean-Baptiste sabia da fatalidade da morte e nunca duvidou da sua implacabilidade. Sabia que o destino do corpo era a podridão, mas duvidava de que tudo que compunha o seu espírito tivesse o mesmo destino. Esse relativo otimismo era o moto que animava Jean-Baptiste a encarar o Grande Enigma. Ao mesmo tempo, temia que o seu decifrar fosse mesmo inacessível ao homem - a vida não era um fim, era um processo. O filósofo estava condenado ao espanto, e para escapar do desespero da impotência, distraía-se especulando.

    Mas para quê, esse cenário imenso, o universo, onde o homem representa a sua canastrice? Seria o homem tão-somente uma marionete grotesca, manipulada por deuses aloprados? Jean-Baptiste desconfiava que não. O mundo era um código, tinha certeza, e para decifrar esse código era necessário possuir alguma coisa em comum com aquele que o elaborou, da mesma forma que temos sempre em comum com as toscas charadas dos homens a linguagem humana e suas regras. E o que o homem teria em comum com esse conjurador misterioso? Jean-Baptiste não sabia, mas a lógica lhe dizia que se o homem nada tem em comum com Deus, então Ele não existe, uma vez que o próprio ato de criar o homem já estabeleceria uma relação entre ele e Deus, e uma relação implica algo em comum. Cabia então descobrir o código onde se escondia essa relação primeira. Por outro lado, se Deus não existisse, era então trabalho do homem construir um mundo e criar um Deus para explicá-lo.

    Jean-Baptiste mirou mais uma vez o vale abaixo. Uma espécie de transe o espreitava. Um tufão varreu a alma e levou consigo deduções, raciocínios e conclusões, deixando apenas cravada e fixa na mente do filósofo a imagem de um círculo. A imagem lhe trouxe um consolo inexplicável, porém reconfortante. Piscou várias vezes, a imagem gradativamente se dissolveu, e a consciência retomou o seu lugar.

    Súbito concluiu que, assim como no caos ele intuía haver uma ordem oculta não perceptível, em algum lugar do seu íntimo uma idéia era destilada, uma análise era dissecada, uma verdade era vislumbrada, sem que isso fosse percebido conscientemente, e se desesperava por não ter acesso livre a esse lugar, a essa região obscura da alma onde se dava essa alquimia. Às vezes, ele acreditava, visitava-a durante os sonhos, mas de lá retornava apenas com uns retalhos de enigmas incompreensíveis, que aumentavam ainda mais a sua perplexidade. Ele via-se então como duplo: um consciente, conectado ao mundo pelos sentidos, sujeito a dor e prazer e, acima de tudo, escravo da vida e da morte; o outro, arredio, eterno, onipresente, dissimulado, onisciente. Mas esse irmão obscuro de Jean-Baptiste raramente permitia-se mostrar. E quando o fazia, quase sempre não era percebido pelo irmão de carne.

    Jean-Baptiste sacudiu a cabeça de um lado a outro, pressentindo outra vez o vulto da espiral de idéias. Era melhor voltar aos estudos. Deu as costas à janela e olhou o escritório. Ali estavam, provavelmente, algumas das obras mais importantes escritas pelo homem (entre aquelas que escaparam do fogo e das catástrofes) até o ano da graça de 1527. A sala inspirava uma calma de convento, com os livros em ordem nas estantes, os papéis organizados, o chão limpo pela criada livre de qualquer mácula. Olhou com ternura o ambiente e concluiu que aquele era o seu único e verdadeiro mundo. Toda aquela sabedoria acumulada, ainda que frágil em suas certezas e transitória em suas verdades, trazia-lhe a tranqüilidade de saber que ao menos naquela pequena porção do universo ele estaria à vontade, e enterneceu-se com a paz e a tranqüilidade do escritório.

    Mas ali, ao lado da frágil vidraça que separava a tempestade da calmaria, o frio do calor, o caos da ordem, ele de repente sentiu-se como o fiel de uma estranha balança. "O homem é a medida de todas as coisas", dizia um sofista, mas Jean-Baptiste achou a analogia um tanto vulgar. Essa posição de fiel de balança lhe trouxe um leve desconforto, uma inquietação de subordinado insurgente. Julgava que na verdade se sentia mais como um títere de teatro de segunda classe que como fiel de balança. E quem tinha autoridade para ser o juiz que aferia e mantinha o prumo da balança, ou a habilidade para manipular os cordões da marionete? Ele se indignou com esse injusto magistrado oculto, com esse manipulador inacessível, e odiou mais uma vez a inextrincabilidade da natureza.

    Talvez houvesse redenção nos livros. Talvez fosse possível que as suas ilusões pudessem aplacar o desespero diante da realidade incompreensível. Mas o estado de espírito de Jean-Baptiste naquele momento não permitia e nem desejava redenções. Por essa razão, odiou também a pretensão dos livros e incomodou-se com a ordem momentânea e artificial do seu escritório. Amaldiçoou a presunção dos filósofos, a arrogância dos sábios, a ingenuidade delirante e escapista dos poetas.

    Como corolário de todos esses devaneios, foi tomado por um repentino descontrole, e num rompante atirou o livro mais próximo à parede. O livro atingiu em cheio um desenho a carvão de Saturno devorando seus filhos, ricocheteou e caiu ao chão. Jean-Baptiste, que em sua juventude devotara um amor quase físico aos livros, imediatamente envergonhou-se de sua histeria. O livro, afinal de contas, era um objeto sem culpa, feito de papel honesto e imparcial, que o homem corrompeu ao manchá-lo com suas garatujas vãs, e teria sido outrora uma árvore frondosa, a cuja sombra talvez sonharam poetas e amantes.

    Sentiu um estupor animal, produto final daqueles tormentos interiores. Passaram-se alguns poucos segundos, a consciência exilou-se durante alguns momentos e a cortina da ilusão ameaçou entreabrir-se para revelar uma réstia da verdadeira luz. Mas a precipitação voluptuosa com que Jean-Baptiste sempre se lançava a esse véu no afã de descortiná-lo por completo fazia com que a imagem se esquivasse como virgem recatada, assustada com tanta impetuosidade, e o abandonasse sozinho com suas esfinges.

    A única coisa que o alentava era reconhecer que essas experiências sempre deixavam uma semente adormecida, e tudo que Jean-Baptiste poderia fazer era aprender a fazê-la brotar. Sem se dar ao trabalho de recolher o livro caído ao chão, deixou a sala e foi jantar. Dormiu pouco naquela noite.

    O dia seguinte amanheceu já com Jean-Baptiste em seu escritório. A tempestade cessara. O vale agora estava atapetado de um branco ofuscante e uniforme. Diversamente da véspera, quando fazia o papel de caos, era o vale agora que inspirava paz e tranqüilidade.

    Uma suave batida na porta do escritório revelava que a criada trazia o seu desjejum e Jean-Baptiste ergueu-se da cadeira. Notou então o livro que atirara à parede na noite anterior ainda no chão. Ao repô-lo entre seus pares na estante, em uma das prateleiras mais altas, Jean-Baptiste falseou o pé e caiu. Tentou agarrar-se à estante, mas uma das prateleiras não suportou o peso e tombou sobre ele, trazendo junto alguns livros. Atordoado, Jean-Baptiste recompôs-se, levantou-se meio tonto, com um zumbido estranho na cabeça. Apurou o ouvido e prestou a atenção, concentrando-se para identificar a origem do zumbido. Vinha da estante.

    Lentamente, como a imagem refletida num lago agitado que surge quando a água se acalma, o zumbido ganhou significado. Era a voz dos seus livros! Jean-Baptiste podia ouvir os seus livros! Escutando com bastante atenção, para discernir um entre centenas, ele conferia: aquele Plutarco louvava os homens ilustres; aquele filósofo especulava sobre a verdade; um poeta exaltava a beleza; um alquimista explicava a transmutação... Todas essas vozes cresciam e se juntavam num coral louco e ensurdecedor, onde já não era mais possível identificar uma voz isolada, mas apenas um brouhaha desvairado.

    - Calem-se! - gritou Jean-Baptiste.

    Com efeito, calaram-se todos a um só tempo, e Jean-Baptiste comprovou pelo menos o seu domínio sobre a palavra e sobre seus livros. Tentou se concentrar para retornar ao trabalho inacabado de véspera, mas restou ainda, distante, um delicado ruído, como o ronronar de um gato. Vinha detrás de uma porta que dava para uma sala contígua ao escritório. Surpreendeu-se ao reconhecer que nunca houve ali porta alguma, e muito menos uma sala contígua, mas não se perguntou de onde surgiram. Dirigiu-se até a porta e abriu-a com cuidado.

    Atrás da porta, ao contrário do escritório aparentemente silencioso mas na verdade cheio das vozes então caladas dos livros, o silêncio preenchia todos os cantos, impregnando-se como tinta nas paredes, e uma escuridão impenetrável não permitia qualquer possibilidade de se ver alguma coisa. E ao abrir a porta que dava acesso à sala desconhecida, Jean-Baptiste deixou que nela entrasse um punhado de sons esparsos, sobras do alarido dos livros, que imediatamente se aproveitaram do ar que preenchia o aposento e reverberaram pelas paredes, até morrerem nelas absorvidas. Jean-Baptiste forçou a vista para perceber alguma coisa além do pequeno espaço onde pousava a luz vinda do escritório pelo vão da porta entreaberta, mas nada conseguiu ver, tão grande era a densidade da escuridão. Mas pressentiu que havia ali alguma coisa, ainda que escondida ou dissimulada. Escondida, com certeza, das ameaçadoras e indiscretas luzes que Jean-Baptiste trouxera consigo e que, se nela refletissem, certamente viriam ferir os olhos de Jean-Baptiste, evidenciando sua existência. Cautelosamente, impelido por um desejo meio insensato mas imperativo, Jean-Baptiste penetrou na sala, cerrou a porta atrás de si, mergulhou na escuridão, e viu-se frente a frente com o impessoal, o imaterial, o não-manifestado, presente sempre nas entranhas da treva, escondido no coração do silêncio, no âmago do vazio, disfarçado no seu reflexo escuro. Jean-Baptiste manteve-se calado e em silêncio, sem mover um músculo, evitando que a sua própria manifestação interferisse em qualquer outra. E sentiu uma necessidade repentina de sumir na escuridão, tentou deixar-se levar à deriva no oceano infinito que intuía haver por ali, concentrou-se em deixar de ser um ponto para ganhar a linha, depois dobrando-se em ângulos cada vez menores, enchendo o pi de dízimos e dízimos, em desesperada busca do círculo que se fecha na origem ou da espiral que se reduz a um ponto sem extensão, que por sua vez partiu de outro ponto extenso. O exercício foi em vão: Jean-Baptiste continuou a reconhecer as suas próprias medidas, viu ainda as diferenças e as relações que regiam a sua existência. Ainda oscilava ao sabor do desequilíbrio que gera o movimento, compartilhava do esforço do universo administrando forças contrárias e complementares na ânsia frustrada do equilíbrio e da harmonia. Desesperado, ele viu que essas forças, chocando-se aleatórias pelo caminho, geravam outros choques e reações em cadeia, que trouxeram ainda mais substância e densidade aos seus pensamentos. Fechou os olhos e apertou-os com força, implorando a si mesmo que fosse capaz de se livrar de si mesmo, mas a imagem que se lhe projetou na cabeça foi a sua própria refletida num espelho dentro de um espelho, dentro de outro espelho dentro de um espelho refletido num espelho dentro de outros espelhos que se refletiam no primeiro espelho que continha a sua imagem gasta e cansada de tantos reflexos errantes, sedenta de porto onde ancorasse anônima. Abriu os olhos e viu a escuridão. Apurou os ouvidos e escutou o silêncio. Sempre crescente e opressor, o volume do silêncio tornou-se tão grande que Jean-Baptiste dobrou-se em dores, tapando os ouvidos com as mãos. Transtornado, ele gritou o mais que pôde, emitindo sons mais altos que o próprio silêncio que, assim profanado e intimidado, refugiou-se no abismo da escuridão, fugindo entre as paredes de um labirinto de sons. Os berros de Jean-Baptiste ecoaram e reverberaram de parede a parede até morrerem. Dentro das paredes que absorveram os gritos, as moléculas vibraram e a energia transferiu-se aos átomos, que também vibraram e se aqueceram, excitados pela energia gerada pelos gritos de Jean-Baptiste. O calor da vibração emanou das paredes e migrou para fora da sala como um espectro, transferindo energia para todo o universo, e em poucos momentos tudo voltava ao normal, exceto pela expectativa da volta dessa energia, reprocessada e enfraquecida pela sua reverberação pelo mundo. Mas ela mal tinha começado sua jornada, e o retorno levaria tempo. Jean-Baptiste teria ficado mais velho e mais fraco, e esperava que o reencontro com essa energia subtraída pelos seus gritos lhe desse de volta a força que desprendera para calar o silêncio. Sentiu-se muito fraco e desamparado e por isso chorou feito criança, perdendo ainda mais forças. Não quis mais continuar. Procurou voltar, buscou a porta que se abriria para a luz familiar do escritório, mas não achou o caminho. Estendeu os braços e não percebeu as paredes. Suspeitava mesmo que não sentisse o chão. Foi então que se acalmou, constatando que esses eram sinais alvissareiros da dissolução. Começou então naquele momento a atravessar as fronteiras, e sua pele não seria mais o limite que o separava do mundo. As vibrações dos átomos à sua volta harmonizariam-se com os átomos do seu corpo, trocariam misteriosas energias, e Jean-Baptiste aliviava-se ao perceber que começava enfim a suportar ouvir o silêncio, a enxergar com clareza a escuridão, e em breve transporia todos os limites.

    Súbito, a escuridão começou a se alternar, em intervalos cada vez mais curtos, com a luz mais ofuscante que jamais se viu. Tão e tão rapidamente que houve um momento em que Jean-Baptiste já não mais sabia o que era claro ou escuro. Ao mesmo tempo, o silêncio voltou a ficar ensurdecedor, mas isso não mais o incomodou. Já sabia ouvir o silêncio. Sabia também que o mesmo processo que tirou o significado da diferença entre o silêncio e o som ocorreria com a luz e a escuridão. Em harmonia com a alternância entre luz e trevas, soaram sons de freqüências progressivamente mais altas, enchendo o aposento, crescendo em altura até superar a barreira do audível, para enfim se transformarem em vibrações tremendas, tendo por efeito a explosão das paredes da sala. Tudo então se acalmou.

    Mas nem todos os nortes haviam se perdido. Jean-Baptiste percebeu ainda um outro som. Começou muito baixo, distante, como se voltasse serpenteando das profundezas do labirinto onde estava escondido. Era uma música complicada, sem andamento preciso nem tonalidade. Na verdade, Jean-Baptiste só reconhecia o significado musical contido naquele som ao perceber que ele não era gratuito e que possuía uma estrutura carregada de intenções, além de parecer coordenado e planejado de modo a produzir alguma mensagem estética. Quando se tornou completamente claro e audível, o som tomou conta do espírito de Jean-Baptiste e o afogou em sua grandeza. Jean-Baptiste tentou dividir e separar o que era unido para compreendê-lo melhor. A totalidade do significado era por demais atordoantemente avassaladora para ser absorvida de uma só vez. Era preciso quebrar, dividir, fragmentar a totalidade a fim de percebê-la. Jean-Baptiste então pôs a métrica, estabeleceu a altura e as relações harmônicas. O som ganhou medida e limite. Jean-Baptiste achou um axioma: todas as coisas são apenas oscilações entre duas únicas coisas em diferentes medidas. A experiência estética estava agora subordinada às medidas estabelecidas por Jean-Baptiste, e o prazer que daí advinha então só poderia ser um reflexo de si mesmo. Porque para compreender o que ouvia, Jean-Baptiste estabeleceu limites e quantidades na forma, mas esses limites e quantidades tinham seus parâmetros em Jean-Baptiste, e não na fonte de origem. Seria possível dizer que o significado original já não mais existia, porque em última instância o som que ouvira era o som de si mesmo. Jean-Baptiste encontrou sua voz naquela harmonia e ganhou o seu lugar na orquestra. Tinha achado o espelho definitivo. A saída do labirinto. O fim da espiral. A resposta para a esfinge. O fundo sereno do maelström. Breve não haveria necessidade de mais sons para ouvir e nem de luzes para ver. Aprendera a última lição, e então tudo se calou.

    Wiwine, a criada, ao ouvir o estrondo, entrou no escritório com o desjejum do patrão. Soltou um grito agudo e deixou cair a bandeja. Sob uma montanha de livros, com a cabeça rachada pela pesada prateleira que desabara da estante, jazia o corpo morto de Jean-Baptiste.






Jorge Nunes

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