Lovefool

              de ANdré CZarnobai



    - Eu sou o rei dos idiotas - disse. E decidiu interromper sua caminhada para acender outro cigarro. Fumava não por vício, nem por charme. Fumava simplesmente porque achava divertido brincar com a fumaça.

    E fumava muito raramente, nunca gastara um centavo com cigarro.

    Ventava muito, por isso parou para fazer uma barreira com as mãos em torno do cigarro. Porto Alegre tem muito vento em agosto. Muito frio e vento, mas ainda assim é uma cidade que conserva seu aplomb, seu glamour. É uma cidade bonita.

    Ao menos ele pensa assim.

    O cabelo ondulado e loiro há meses não via um corte, as franjas castigavam os olhos dançando com a ventania. Dizia que não cortava por estilo, mas muitos suspeitavam que era por simples falta de vontade, desleixo. O interessante é que apesar dos cabelos desgrenhados, muitas o achavam irresistível.

    Algo nos olhos, talvez. O azul dos olhos ficava ainda mais azul em contraste com o tom plúmbeo do céu e o branco da pele. Cultivava um cavanhaque desde os tempos de faculdade, desde o dia em que perguntou a Rosa o que ela achava da idéia de ele deixar crescer a barba.

    Rosa sempre o achou muito intrigante. Ela não o achava especialmente bonito, embora soubesse que o mais importante nele não era a beleza física, esta tão comum, tão ordinária. Ele tinha mais que isso. Será que era o jeito de falar, o jeito de sorrir? Será que era o jeito com que os olhos dele brilhavam cada vez que olhavam os seus? Rosa nunca entendera, mas a atração que sentia por ele era incontrolável.

    Ele também sentia-se violentamente atraído por Rosa. Na verdade, era perdidamente apaixonado por ela. Faria qualquer coisa para tê-la ao seu lado.

    Escrevia-lhe poemas e ocultava mensagens em cada um deles. Declarava seu amor de todas as formas. Em olhares, sorrisos, frases com duplo sentido. Declarava seu amor de todas as formas, isso é verdade. Mas nunca de forma direta e clara.

    Talvez por isso eles nunca chegaram a ficar juntos. Isso e o namorado de Rosa.
    Isso e a mania de mulherengo dele.

    Se amavam em silêncio, e tinham suspeitas dos sentimentos um do outro. Mas jamais chegaram a deixar claro esse sentimento. Nunca disseram nada. Medo, timidez, covardia. Tudo que tinham era um livro de poesia e uma frase do Fernando Pessoa que dizia: "Se não disseres que me ama como é que eu vou saber?"

    Tentou por diversas vezes acender o cigarro, mas o vento sempre vencia. Enfim acendeu o cigarro. Talvez porque o vento se cansara - pensou. Procurava sempre pensar em forma de poesia quando estava com ela. Queria sempre dizer coisas bonitas como ela. Sempre dizia o máximo possível para que Rosa entendesse, mas por algum motivo, Rosa não entendia. Ele pensava que ela não entendia.

    Na verdade Rosa tinha dúvidas a respeito das atitudes dele e receio de demonstrar o que ela sentia. Deu uma tragada, soltou a fumaça pela boca e aspirou com o nariz - sua brincadeira predileta.

    Entretido com o exercício e com a cor laranja do braseiro, nem percebeu que Rosa o estava fitando com uma cara de reprovação desde que pararam. Num leve movimento de olhos, deixou-a desarmada. Era somente um segundo, um momento congelado no canto do olho, gravado na retina. Uma imagem a mais de Rosa. Para ele, tinha perfume de flores. Fora abençoada com o nome mais belo que se podia escolher. Rosa.

    A morena com rosto de criança, feições de esquimó como ele costumava definir. Quando ela o olhava no fundo dos seus olhos com aqueles olhos negros e profundos ele se sentia caindo em um poço sem fim. E sempre se desmanchava quando ouvia sua voz, a voz de cetim que, às vezes meio rouca, ainda assim era linda. A boca sempre parecia lhe sorrir, a língua roçando de leve o lábio superior o deixava maluco.

    Rosa e seus olhos sempre tão tristes, sempre perguntando, sempre querendo. E os olhos dele sempre tentando fazê-la sorrir, sempre respondendo, sempre querendo.

    Rosa com seu corpinho de menina bonita, cor de bronze e liso. Seu corpo perfeito de bailarina espanhola, de amante espanhola. Pernas quentes e lapidadas com a perfeição do artista, os seios que caberiam na palma da mão.

    Rosa e seu caminhar de gato, macio e calculado. Delicado era a palavra que lhe vinha à cabeça.

    Queria beijá-la naquele momento, entre as ruas onde passou boa parte de sua vida, perto do Estádio Olímpico, mas conteve-se mais uma vez, para arrepender-se amargamente uma fração de segundo mais tarde.

    Rosa mudou de expressão. Mas expressou seu estranhamento:

    - Que foi que tu disse?

    - Eu sou o rei dos idiotas.

    - Como assim?

    Ele tornou a caminhar. Deu as costas à Rosa enquanto falava. Ela o seguia, curiosa como sempre. O vento pareceu aumentar de intensidade, mas as folhas de milhares de flores roxas desenhavam espirais com os redemoinhos e abriam caminho para os seus passos naquelas ruas. Deu mais uma tragada e soltou alguns anéis de fumaça. Virou-se para Rosa a falar:

    - Eu sou o rei dos idiotas, mesmo. Cheguei a essa conclusão um dia desses logo depois do almoço. Eu tinha saído para almoçar, e quando voltei ao meu carro, ele não pegou. Precisei ligar para um mecânico, óbvio. Enquanto ele ficava com aquele papo de mecânico, fuçando por tudo, sentei-me na calçada e fiquei pensando nos meus amigos. Pensei nas amizades que conquistei, e como as conquistei. Bobagem, coisa de quem não tem o que pensar, mesmo. Percebi que eu não me sinto totalmente bem com determinados grupos de pessoas. Com nenhum grupo de pessoas. Não acho meu grupo de pessoas. Não consigo ser alternativo e ir pro Fim de Século e pro Garagem Hermética ou ir pra festas com muito trago e Tom Waits. Não consigo ir pra praia com surfistas e tentar ser surfista, fumar maconha e ouvir Tribo de Jah. Não consigo ficar preso em um mundo infantil, rindo de tudo, assistindo TV nonsense e ouvindo qualquer música engraçada e ainda achar bom, e sem tomar nenhuma droga. Eu acho que sou muito mais que isso, acho que eu faço tudo isso. E eu gosto de fazer tudo isso.
    O problema é que esses grupos são muito fechados, eles não se misturam. Eu jamais poderia fumar maconha na frente do pessoal que gosta de ver o Chaves, ou dizer que eu gosto de "raves" pros surfistas, assim como os alternativos jamais compreenderiam o que eu estaria fazendo num fim de semana no Havaí ou num show do Wando. - Notou que Rosa o olhava com insistência, não tirava os olhos dele enquanto falava.

    - Daí me dei conta de como eu falo bobagem.

    Ela começou a rir. Ele quis começar a rir, pois fixara seus olhos no sorriso dela, e adorava ver seu sorriso. Um dos sorrisos mais lindos que já vira.

    Resolveu manter a postura:

    - Falando sério, eu falo muita bobagem. Não sei como as pessoas podem levar a sério o que eu falo. As minhas teorias sem pé nem cabeça, as loucuras que eu invento, as explicações e opiniões que eu tenho. Descobri então que eu tenho duas formas de conquistar as pessoas: entre pessoas inteligentes, minha inteligência não é atrativo, então faço minhas loucuras, minhas atitudes "rebeldes e desafiadoras" - fazia com os dedos indicador e médio um movimento de arquear para baixo que se entendia por "aspas"- como usar drogas ou sair por aí correndo e gritando, gastando dinheiro, nem ligando pro que acontece. Entre pessoas burras, preciso me impor pela inteligência, preciso citar poemas, mostrar que eu entendo de política, que eu sei falar inglês. E o que acontece?

    Olhou para Rosa, parando mais uma vez e abrindo os braços. Estavam perto de uma praça, e ele virou a cabeça ao redor para reconhecer o ambiente. Pegou-a ela mão e puxou-a, dizendo "vem comigo". Rosa tentou segurar o sorriso desviando o olhar, e fez um pouco de resistência mas logo cedeu. Foram até um banco da praça. Sentaram e ficaram se olhando. Ele perguntou outra vez, com o cigarro entre os lábios:

    - E o que acontece?

    Rosa deu de ombros, num ar meio irônico, meio desorientada, afinal ela nunca sabia o que ele ia aprontar. Qualquer declaração tinha que ser milimetricamente calculada, para que ele ficasse sem argumento. Rosa tinha muito medo de deixar transparecer mais do que ela queria. Tinha medo de que ele só a estivesse testando, brincando, como fez com muitas mulheres em outros tempos. Além do mais, ela tinha seu namorado mas, estranhamente, não lembrava nem do nome dele naquele momento.

    Tossiu por causa da fumaça, e disse:

    - Não sei, o que acontece?

    - Eles me idolatram!

    Quanta petulância - pensou Rosa. Fez cara feia, de quem achava ridícula aquela declaração. Pensou "te enxerga", apesar de no fundo ela também o idolatrar.

    E ela sabia disso, por isso sua reação foi de manter a conversa, perguntando:

    - Mas o que isso tem a ver com ser rei dos idiotas? Tu tá chamando teus amigos de idiotas?

    - É, mas cada um é idiota em seu jeito particular.

    Deu outra tragada, voltou o rosto pra frente e se esparramou no banco, abrindo os braços e levantando um pouco a cabeça, procurando olhar os pássaros que voavam por lá. Rosa riu desorientada, não tinha a mínima idéia do que se passava na cabeça dele, talvez por isso gostasse tanto do jeito daquele cara.

    Aqueles olhos que pareciam vasculhar cada detalhe da sua alma de mulher, aqueles olhos que ela adorava olhar e sorrir. Ele e seu perfume raivoso, agressivo. Mesmo assim, terno, calmo. Algo inexplicável.

    Rosa adorava os cabelos dele, mesmo despenteados pelo vento, como agora. Adorava os cabelos de ouro dele, que às vezes eram tão claros como o sol, outras tão escuro como cobre. Adorava quando ele lhe elogiava, quando ele beijava sua mão olhando em seus olhos. Não, em seus olhos não. Em sua alma.

    Rosa tinha ciúmes de suas mulheres. Tinha ciúmes de todas e lutava para esconder isso dele. Pensava que era sinal de fraqueza. Pensava que isso o deixaria muito confiante, muito dono da situação. E Rosa era uma mulher muito independente. Não queria se entregar a um homem assim, tão fácil. Ao menos não queria que ele soubesse que seria tão fácil.

    A essa altura ela já estava hipnotizada pelas palavras dele. Lembrou outra vez que tinha namorado, mas que esquecera seu nome.

    - Tá, mas então tu tá me chamando de idiota?

    Virou o corpo para ela, sentando de lado no banco e chegando mais perto. Jogou o cigarro fora e começou, gesticulando com uma das mãos, enquanto a outra continuava apoiada no encosto do banco, atrás de Rosa:

    - Pensa assim: Ninguém pode gostar de ti se não for impressionado por ti. Isso é o mínimo. Assim, minha inteligência não serve pra nada no meio dos inteligentes, ela é neutra. Logo, é absolutamente dispensável, e não quer dizer nada. Eu seria só mais um. Quem a seguir, ou quem se deixar seduzir pelas minhas idéias só pode ser idiota, até porque pessoas inteligentes tem idéias próprias. Meus amigos burros seguem minhas idéias, para eles eu sou um rei, ou, no mínimo, um ídolo. Sendo assim, meus amigos burros são idiotas.

    - Até aí tudo bem, faz sentido, mas eu não entendo onde tu quer chegar. Como é que tu vai dizer que todos os teus amigos são idiotas?

    - Presta atenção no outro lado: minhas loucuras não impressionam o pessoal burro. O pessoal burro, em geral, é mais louco por natureza, é preciso compensar os defeitos, né? Bom, então para eles minha loucura é nula. Eu sou um deles. Quem me idolatrar por fazer loucuras é retardado, porque para eles as loucuras são coisas corriqueiras. Assim, seriam idiotas. Mas os inteligentes acham o máximo um cara do nível deles, culto e tal ainda ser louco. O que eles fazem? Me idolatram, o que os faz idiotas. Entendeu?

    Não entendeu.

    Bom, até entendeu, mas achou aquilo loucura demais para ser levado a sério. Também, depois de levar a sério um monte de loucuras dele e mais tarde descobrir que eram só brincadeiras, Rosa estava acostumada. Mas talvez por isso ela tivesse dúvidas a respeito das intenções dele. Medo de ser feita de bobo. Pensou na música "Lovefool". Na verdade, pensou no título da música. Se deu conta mais uma vez que o amava.

    Ele terminara de falar e ficara olhando para Rosa. Ela respondeu com um sorriso e um aceno de cabeça que tinha compreendido, afinal, era mais uma teoria maluca que ele inventara, e se ela resolvesse dizer que não tinha entendido, ele provavelmente ia chamá-la de ignorante. Ao menos é o que ela pensava. Olhou sua boca vermelha no meio das barbas ruivas e lambeu os lábios.

    Teve vontade de beijá-lo, mas lembrou-se do namorado, e dessa vez percebeu que além do nome, havia esquecido de como era seu rosto. Ele começou a falar de novo:

    - Sabe, é bobagem mesmo. Só uma coisa que eu pensei enquanto consertavam meu carro... Melhor a gente ir lá pra casa, senão vai ficar muito tarde pra voltar depois.

    - É...mas na verdade eu nem preciso ver os teus arquivos de Monet, mesmo...

    Ele pensou em perguntar "Mas então por que tu me fez sair mais cedo do trabalho? Por que tu me fez andar mais de dois quilômetros contigo se tu não queria ver meus quadros?", mas se deu conta de que finalmente havia pego Rosa em um ato falho.

    Rosa percebeu que falou mais do que devia, e ficou nervosa. Riu e passou a língua nos lábios bem devagar, desviando os olhos para um cachorro que corria e latia por ali. Achou que ele não tivesse percebido.

    Ele, vendo a língua de Rosa acariciar os lábios semicerrou os olhos e sorriu.

    Ela voltou seus olhos para ele e sorriu de volta.

    Por um momento iluminado, os dois se olharam e sorriram. Ele pensou em uma música do Cardigans, que sempre o fazia lembrar-se dela. "Rise and shine".

    Cresça e brilhe, cresça e apareça. Decidiu aparecer. Aproximou-se lentamente do rosto de traços perfeitos de Rosa. Ela o fitava sorrindo sem mostrar os dentes, e abaixando o queixo em direção ao peito, com os olhos faceiros fixos nos olhos azuis dele. Parou antes que ela começasse a se mexer.

    Ele fez menção de dizer alguma coisa.

    A essa altura o sol já havia vencido a barreira das nuvens, e o laranja misturava-se ao azul, vermelho, cinza e preto no céu. E a brasa do cigarro misturou-se com os olhos e a boca dele, o céu e a boca de Rosa. Eram quase seis da tarde, o frio aumentara. O vento também.

    Ela tapou os lábios dele com um dedo, fez um biquinho como se pedisse que ele se calasse.

    Ele então sorriu, se aproximou mais e fechou os olhos.

    Aproximavam-se lentamente, e agora ela também se movia em direção ao beijo.

    Sentiram os hálitos um do outro durante um segundo. Ela, com hálito de morangos. Ele, de hortelã. Encostaram os lábios, ainda fechados. Ficaram por longos momentos sentindo a maciez de seus lábios, brincando com os lábios, sentindo o gosto dos lábios. Ela colocou um dos braços em volta da cintura dele, ele descansou a mão sobre uma perna de Rosa. Quase ao mesmo tempo, decidiram deixar seu desejo se transformar em uma doce carícia molhada numa tarde de inverno, e se aqueceram abrindo a boca e deixando a língua brincar dentro da boca. Beijo francês, pensou ele. French Kiss, na verdade foi o que pensou. Mas pensou muito rapidamente, pois em pouco tempo percebeu que não lembrava mais seu próprio nome. Ele havia esquecido de todas as suas mulheres. Na verdade ele procurava Rosa em todas as suas mulheres, mas como nunca achava, trocava muitas vezes, sempre frustrado. Sempre sentindo que faltava alguma coisa. Naquele instante decidiu que se ela quisesse, seria só dela, largaria o cigarro e as bebidas. Tanto que pegou o maço do bolso e jogou no chão.

    Ela interrompeu o beijo. Ele abriu os olhos, surpreso. Ela sorriu e o colocou as duas mãos na sua nuca, ficou brincando com seus cabelos de ouro. Se deu conta que não lembrava o nome do namorado, não lembrava do rosto do namorado, não lembrava nem do gosto dos beijos do namorado. Na sua cabeça, só os olhos dele, o gosto dele, e o nome dele, brilhando na sua frente em várias cores toda vez que fechava os olhos. Resolveu provocá-lo. Disse entre o sorriso:

    - Posso te perguntar uma coisa?

    - Pode, claro.

    - Qual é o teu nome?

    Rosa sabia que jamais esqueceria o nome dele, mas mesmo assim queria ouvir sua voz pronunciando cada sílaba, para que quando pensasse nele, pensasse com a voz dele. Ele sorriu, mas não disse o nome. Em vez disso, escapou do abraço dela, levantou-se e abriu os dois braços, erguendo-os em direção ao céu. - Esse é o meu nome. E esse nome tu jamais esquecerá.

    Naquele exato momento, um disco de Charlie Parker tocava em algum canto da cidade, e o sol sumia entre os dedos dele. Mas mesmo que o mundo explodisse naquele momento, eles não prestariam atenção. Tudo que importava era a pintura que o pôr-do-sol fazia no céu. E o nome dele que ela jamais esqueceu.





ANdré CZarnobai,
20 anos, editor do e-zine CardosOnline, escritor e estudante
de jornalismo na Fabico UFRGS

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