A Bofetada

              de Maria Seixas



    Diziam que ela era uma criança adorável, faladora, gostava de ser simpática com todos e como quem vai a Roma tem que ser romano, na aldeia era camponesa, guardava porcos e ovelhas com as caseiras da casa grande, no meio de montes e de vales.
    Mas, no seu coraçãozinho de criança, alguma coisa estava mal.
    Saía de casa sem dar satisfações a ninguém, também ninguém dava por ela, queriam lá saber!
    Um dia passou junto ao cemitério, era fim de tarde, os ciprestes sussurravam uma música misteriosa que a atraía, parecia que o mundo dos vivos já não queria nada com ela, o melhor era entrar e falar com os mortos talvez eles lhe ligassem mais, talvez tivessem o poder de saber o que estava dentro do seu coração, essa tristeza que não tinha nome, essa solidão que não tinha cura.
    Cá fora as flores de beladona abriam as suas corolas despedindo-se do verão, por isso lhes chamavam assim, Despedidas. Gostou da tranquilidade do lugar, ali ninguém discutia, não era como em casa dela em que andava sempre tudo aos gritos pareciam doidos ,que é que ela tinha a ver com isso, pensava.
    Estranhou que não houvesse uma flor naquele lugar e aquelas ali tão perto, tão lindas, ninguém olhava para elas, não eram de ninguém.
    Foi buscar uma braçada, pôs-se a enfeitar uma campa, a primeira que viu, a que ficava mais á frente, mais perto dos olhos mais perto do coração. As flores sobraram porque não as pôr noutra , afinal aquela ao lado também era de gente e ali, ao menos, deviam ser todos iguais.
    Acabaram-se as flores foi buscar mais, que as campas parecia que nasciam, as de trás eram mais pobres, não tinham pedra sequer, tudo terra batida, nem ali havia igualdade nenhuma, era tudo uma injustiça que tristeza...
    Esmerou-se nas mais abandonadas, cada vez mais flores que trabalheira mas, não podia deixar a obra inacabada, seria indecente que abandonasse alguém para fugir ao trabalho, os mortos podiam não gostar de ser descriminados tal como os vivos não gostavam.
    Ia alta a lua quando terminou, cemitério às escuras, só a luz da lua iluminava tudo e ela não tinha medo, nem tal coisa lhe passava pela cabeça, medo era coisa que não sabia o que era.
    Voltou para casa, coração tranquilo, missão cumprida, todo o cemitério era cor de rosa todo ele uma flor só. Ninguém tinha ficado esquecido ao menos por uma vez ,o que era justo.
    Pelo caminho lembrou-se da mãe, ai se ela já lhe tinha notado a ausência, talvez não, estava habituada e não ligava, tinha mais em que pensar , não se ralaria muito.
    Ao entrar notou que tinha fome, que era tarde, só queria era comer qualquer coisa e deitar-se com o coração em Paz com os vivos e os mortos, afinal tinha feito tudo como devia ser, bem direitinho.
    Foi então que, de repente, sentiu estrondear-lhe o mundo na cara ,como se as estrelas lhe tivessem rebentado na pequena face de uma vez só. Na realidade, pensou que as tinha visto, ali dentro da sua cabeça, cá fora no Universo inteiro mas, estrelas dolorosas, esmagadoras, explodindo sem aviso.
    Era a mãe que a castigava. Dessa vez, logo dessa vez, tinha sentido a sua falta!
    Sentiu a bofetada sem que uma só palavra lhe tivesse perguntado onde tinha estado, ou qual o crime que tinha cometido.
    E até hoje, velha que já é, ainda não descobriu...




Maria Seixas

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