Quando eu estive no mundo pela
primeira vez a TV era preto e branco, meus olhos se abriram lá por
volta das 20:00 hs e tanto, eu já devia ter meus 15 anos e a cena
era de um Festival da Record.
Palco com flores no chão,
tumulto, Nana Caymmi beijava Gil na boca na coxia e os Mutantes afinavam
a parafernália.
_Domingo no Parque_ dava a
segunda volta, girando, girando e o Gil, brincalhão.
Olha a faca, olha o grito,
olha as flores, olha o mito vibrando, viola tocando, olhos brilhando e
a harmoniosa seqüência anárquica do arranjo fazendo crescer
fogueiras no meu coração.
O tempo passa como um arrepio
e se mistura, num vai e vem de eventos que ora se antecipam, ora retroagem
, mergulhando profundamente nas malhas de uma revolução autodenominada
- coisa que nunca compreendi direito _ Gil e Caetano eram convidados gentilmente
a passar uma semana no _Dói-codi_, arranjavam grana de show para
se exilar _voluntariamente_ na Inglaterra, sob o beneplácito governo
estabelecido, o Vietnã continuava lá, produzindo a morte
de soldados americanos em escala industrial, Armstrong tinha pisado na
lua, a guerra fria ficava ali mais adiante, nos noticiários, o muro
de Berlim era um filme inglês, enquanto Gagarin morria num desastre
de avião. Memórias são assim, sem lei de formação.
Depois daquele abraço,
Gil volta e reinicia.
Um dia ele me disse: _quando
o poeta diz lata, pode estar querendo dizer o incontível_.
Certamente estava falando a mim _
assim como também a todos os que o ouviam comigo, de todas as nossas
possibilidades pois - depois fiquei sabendo _ é sempre bom lembrar
que um copo vazio está cheio de ar.
Essa minha convivência com
Gilberto Gil, de mais ou menos 30 anos, foi profícua e eu decretei:
para entender meu amigo, vou apagar a biografia, esquecer diletantismos
cronológicos e vou criar uma verdade mais bonita do que a verdadeira
pois os deuses são assim: perenes.
Então eu conto como é:
Apresento-lhes Gilberto Gil. Ele
não é negro. Ele não é branco. Tem matizes.
Mas como não é negro?
Sei lá! Até porque negros, brancos, pardos, não existem.
Essas classificações apenas nos detonam o senso.
Existem homens.
Talvez a natureza tenha se esmerado
tanto para torna-lo mais perfeito, que a conjunção mais harmônica
foi torna-lo afroborigenebahiluzobrasileiro, ou então cosmoautoctoantenado
ou quem sabe, ainda, um homem apenas, com coração de mundo.
A lua e a estrela, as tranças
libertárias, o suor brilhando sob refletores, veias saltando da
garganta... e a música... a música... cama de tatame sob
o céu.
Enquanto Donato dormitava e
a paz invadia o coração de Gil, a bananeira, sei não...
Mas a luz de cada olhar, olhar do coração, fitavam,
talvez, as derradeiras noites de luar.
Nesses 30 anos temos nos encontrado
bastante lá em casa.
Ele sempre vem com banda.