Cheiro





    - Alô!?... Arturzinho...

    Arturzinho, com um olho em cada hemisfério, arfante, desgrenhado, tinha pego o telefone no ímpeto do instinto, embora ainda retumbasse o susto do trilitar nervoso do telefone, modelo ainda antigo e, por isso mesmo, muito irritante...

    - Quem ? Onde? Quando? Como?... isso é uma gravação.... essa merda vai detonar no seu ouvido nos próximos cinco segundos... mas se for um brother... beleza...

    Do outro lado da linha, um cara nervoso e envergonhado titubeava em continuar falando, mas necessitando desesperadamente conversar com o amigo.

    - Arturzinho... aqui é o Pedro Augusto, velho... tá ligado?
    -Mas, Pedro Augusto, velho... são 4 horas da manhã... bicho...tô tentando dormir desde as 2 horas, cara... agora que eu pensava que ia direto até as sete... você teve a péssima idéia de ligar.... você já notou que...
    - ... Arturzinho.... você é meu brother, não é?
    - Lógico que sou, né cara? Mas não necessariamente às quatro da matina ... você já notou...
    - ... olha... meu irmão...
    - ... Ih!... essa conversa já tá ficando muito familiar... irmão prá cá, brother pra lá... vai fundo cara!
    - ... sei lá... de repente me arrependo de ter ligado...
    -... agora não, Pedro Augusto, agora não!... você já arrebentou com o meu sono... já arruinou a minha possibilidade de sonhar com a Vera Fisher, com a Sônia Braga, etc. e tal... agora fala, desgraçado!...
    -... Arturzinho... você lembra, semana passada... você e a Elza... aqui em casa..., dona Mônica veio... fez salada de repolho... o jantar... logo eu, que não sei receber ninguém em casa... aquele camarão empanado... lembra? ... eu que detesto camarão...
    - ... claro, Pedro Augusto... e daí? ... tava demais, cara... se bem que feito em casa mesmo só tinha aquela salada de repolho... o resto você mandou trazer do restaurante... né?
    -... e o cafezinho também... tava com aquele cheirinho de coisa íntima, que a gente sente o aroma devagarinho e lembra da infância...
    - ... e daí, brother...?
    -... É a Elza, cara...

    Arturzinho, que até então falava ao telefone deitado, levanta-se e senta-se na cama. O sexto sentido aguçando o juízo, comichões em todo o corpo aguardando o coça-coça....

    -... a Elza como, Pedro Augusto? Que história é essa?...
    - ... calma, Arturzinho... calma.... eu não a vi mais desde aquele dia, cara!... é que ela ainda tá lá...
    -... como, "ainda tá lá...", meu irmão... ela tá dormindo aqui do meu ladinho, bicho... da Silva...
    -... não é bem ela, meu irmão... mas é ela...

    Arturzinho, instintivamente, passa a mão no corpo de Elza, atrás de si, que dorme profundamente, com um sorriso discreto no rosto. Alisa o cetim da camisola sobre os seios, alisa as coxas... aquelas coxas lhe dão um sensação de segurança, a certeza de posse.

    - ... é melhor explicar, Pedro Augusto... eu sou um cara razoável, não sou...?
    -... claro que é, Arturzinho...
    -... eu me acho bem esclarecido, quer dizer, viver num mundo como o de hoje, com as pressões do dia a dia, com os amigos que eu tenho... sou um cara cabeça aberta, não sou?...
    -... claro que é, Arturzinho...
    -... temos tido uma amizade que não encontra barreiras, um jeito assim mais que irmão, não é, Pedro Augusto?... sou um cara cordato... li até Camus, não é, Pedro Augusto?
    -... claro que é, Arturzinho... foi você até que me emprestou A PRAGA, lembra...?
    -... pois é... ... ... ENTÃO ME DIZ, SEU FILHO DA PUTA, QUE SACANAGEM VOCÊ E ELA ESTÃO APRONTANDO COMIGO!!!...
    -... que sacanagem, que nada, Arturzinho!... é o perfume...
    -... PERFUME? ... seu filho da Puta!... você andou cheirando e minha mulher, seu viado... tarado...!!
    -... você não lembra, Arturzinho, naquela noite, quando vocês chegaram aqui em casa? Ela estava linda, maravilhosa, exalando um perfume fantástico... parece que era Francês... eu sei lá... todo mundo elogiou a elegância dela, não fui só eu... o Amaral ficou de olho nela... eu apenas elogiei para ser elegante e também porque era verdade, bicho... mas a minha cabeça estava uma merda aquele dia e eu nem prestei muito atenção em vocês...fiquei meio de lado nas conversas, lembra, Arturzinho...?
    -... é... ... talvez... ... devia ser a consciência pesada, seu traidor desgraçado!... o que foi que vocês conversaram? ... eu vi... ela te chamou num canto e vocês ficaram conversando qualquer coisa...
    - ... antes de mais nada, bicho, ela é minha amiga... fui eu que apresentei vocês, cara!... ela me viu um pouco triste e me perguntou o que eu tinha... eu não quis dizer nada porque não tinha nenhuma vontade de falar sobre meus problemas pessoais, naquele momento... depois ela voltou à mesa do jantar e eu não falei mais com ela, bicho...
    -... então, meu irmãozinho, que merda é essa de me telefonar de madrugada para falar sobre a Elza?
    - ... É o cheiro dela, Arturzinho... o cheiro! -... que cheiro que nada, Pedro Augusto... a Elza não estava usando perfume algum naquela noite, bicho, você está ficando doido... -... como não?
    -... pelo simples motivo de ter acabado o perfume que eu dei pra ela de presente... e ela só quer usar dele... e eu ainda não consegui outro na importadora... ela então, pra me apurrinhar, não aceitou outro... quer dizer... essa não cola, Pedro Augusto...!
    -... bem, Arturzinho... naquela noite, quando vocês cruzaram a soleira da porta, o perfume dela invadiu minha casa... infiltrou minha tristeza... fiquei mais deprimido ainda, do que já estava, meu irmão!... você sabe... perfume lembra coisas do passado, coisas doídas... sabe cara...?

    A voz de Pedro Augusto estava embargada e, mesmo pelo telefone, Arturzinho notava uma sinceridade extrema no amigo.

    -...mas, Pedro Augusto, não havia perfume algum...
    -...se havia ou não havia, bicho, eu não sei... eu só sei que quando vocês foram embora... quando todo mundo foi embora... eu fiquei sozinho em casa, como sempre... mas o cheiro, cara... aquele cheiro irresistível ficou comigo, ficou na sala... na casa toda... eu já mandei a faxineira lavar o chão, as paredes... duas... três vezes... e nada! O cheiro continua lá... eu já sonhei até, Deus que me perdoe (e você também...), com ela, cara... e eu nem tenho lá essas aproximações mais com ela....
    - ... que sonho, Pedro Augusto... que sonho?!
    -... uma coisa meio, assim... erótica sem ser, sabe?
    -... como, " erótica sem ser", meu irmão... isso não existe!
    -... eu sei lá, Arturzinho!... eu só sei que ela chega de mansinho com uma camisola de cetim azul bem clarinha...

    Arturzinho dá uma olhada em Elza, que dorme do lado.
    Ela está usando uma camisola azul bem clarinha...
    A testa de Arturzinho começa a suar...

    -... e deita do meu lado na cama... e aquele perfume me invade por inteiro... começo a sentir tesão por ela, cara... vê se pode?... aí ela me abraça, enconsta minha cabeça nos seios e começa a cantar AS PASTORINHAS...
    -... e daí, Pedro Augusto, e daí?... o que acontece mais...
    -... aí, né, aquele colo quentinho no meu rosto... aquela voz dela...
    -... mas a Elza é desafinada como o diabo, cara! -...quer deixar eu contar, meu irmão? ... quem não consegue dormir por causa dela sou eu!... -... fala!... fala!...
    -... bem, aquele colo macio e quentinho... eu adormeço dentro do sonho, brother, abraçado com ela... aí quando eu acordo de manhã... tá lá aquele cheiro de novo no ar... eu tô ficando doido, bicho... doidão!
    -... você quer dizer que está tarado nela, é?
    -... que nada meu irmão... no sonho não rola nada... eu só adormeço dentro dele...
    -... mas então, o que é que você quer que eu faça?... a nóia é tua...
    -... eu quero que você me ajude. - ... ajudar, como, Pedro Augusto?
    -... sei lá... como é que anda a relação de vocês? Tá tudo legal? Vocês estão se dando bem?...
    - ... o que é que você tem com isso, Pedro Augusto? Esse é um assunto da minha intimidade...
    -... sei lá, cara...
    -... se bem que a coisa anda meio estranha ultimamente... a gente discute muito, eu tenho tido raiva dela por qualquer pequena coisinha que acontece, sabe, uma coisa fora do lugar, uma pergunta qualquer que ela faça... eu acho que o que me liga nela é o corpo... e que corpo... e é meu, tá entendendo?
    -... eu não tô nem aí... ela realmente é uma mulher bonita, tipão... gostosona....
    -... calma aí, meu irmão.... você não tá me ligando de madrugada só pra dizer o quanto que a minha mulher é gostosa, né?
    -... ela tá aí do lado, né, Arturzinho? Dá uma olhadinha nela... talvez você precise repensar algumas coisas, meu caro... rever esse cordão umbilical de sexo que te une a ela... você sabia que, como pessoa, ela é uma mulher maravilhosa?... não lembra? Eu te disse isso no dia em que te apresentei a ela... você sabia que ela te ama?

    Arturzinho engole seco e dá outra olhada naquela linda mulher que respira seu sono suavemente ao seu lado.
    Ele olha e se enternece... os olhos ficam úmidos e ele se emociona suavemente, como há muito não se emocionava.

    -... Arturzinho? Você tá aí?
    -... tô, cara... tô sim...
    -... você tá chorando, meu irmão?
    -... tô não, Pedro Augusto... eu apenas tô sentindo um buraco no peito, um buraco profundo... quanto tempo perdido dizendo besteira pra ela... e, olha cara... pensando direitinho, mesmo com esse meu jeitão pesado com ela... quer dizer, nunca agredi ( ou será que agredi?)... sei lá, agora fiquei confuso... mesmo assim, ela nunca deixou de sorrir pra mim... agora mesmo, na minha cabeça, eu vejo o sorriso dela, os olhos dela... olhos de mulher e de mãe...
    -... Arturzinho?...
    -... Que é, Pedro Augusto?...
    -... lembra que eu pedi a sua ajuda?
    -... ajudar em que, Pedro Augusto... logo eu, meu irmão, que não consigo enxergar o óbvio diante dos olhos, cara... que preciso que um amigo me ligue de madrugada e fale da minha mulher pra mim... onde é que nós estamos?... como é que eu vou ajudar alguém?
    -... Nesse caso você pode, Arturzinho.... quer dizer... você é o único que pode...
    -... como assim?...
    -... eu quero que você venha aqui em casa, sozinho, agora...
    -... pra que, Pedro Augusto ?
    -... pra carregar esse aroma impossível aqui de casa, meu irmão! Eu tenho quase certeza que se você vier aqui e sentir esse mesmo aroma, ele volta contigo pra casa...
    -... Pedro Augusto....
    -...Que foi, Arturzinho?...
    -... me dá só cinco minutinhos....eu chego já...

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Vito Cesar

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