Noves fora





    Eu saí do sarau dos malandros, por dentro da meia-noite, na volta da noite e meia. Eu era o lúcido, os malandros queridos amigos a quem inevitavelmente jamais poderia deixar de amar, pois já era tarde demais, eram os trôpegos, quer fosse por bebida, cansaço ou ideologia.
    Respirei o horário limpo da avenida inteira e saí andando como quem tem determinação, embora determinação não fosse exatamente uma característica marcante da minha personalidade.
    Sentia-me bem, de qualquer forma, tinha conseguido sobreviver a todos eles, malgrado as tentativas de corromper minha postura rigorosa, a qual os infelizes tentaram obrar desde que a noitinha tinha amanhecido.
    Meu jargão costumeiro de "isso não vai dar certo... " nunca funcionou como força moral mas sim como princípio detonador das primeiras gargalhadas da noite.
    "Mister Feio" , como não era charmoso e sim exímio violonista, assumia a direção do único violão da casa, que pertencia a Eurico, que comprou de André, que viu numa liquidação de uma loja de instrumentos, ambos iletrados na música, incompetentes das cordas... ambos queriam apenas o instrumento por conta do "Mister Feio", que era pobre e apreciava aquelas coisas.
    Regina, que há anos queria fazer par comigo, colou no meu joelho, sentada no chão, vez em quando roçando o seio livre no meu Jeans... pobre Regina.... Jeans não tem epiderme... não que ela não fosse bonitinha, desejável, mas é que tinha uma postura ideológica mais para o burguês literário do que para o proverbial operário.
    Demócrito, que há anos tentava se iniciar na ciência dos cachimbos, cachimbava e tossia numa das esquinas da casa, olhando o nada, como quem meditava alguma coisa, todos sabendo que naquela cabeça nada havia para meditar.
    Rosivaldo, no preâmbulo dos seus vinte anos, olhava a todos no redor com um semi-riso no rosto, contente por estar entre os grandes.
    Eu olhava Renata, poderosa entre as mulheres, cabelos louros escorridos, olhar verde no infinito, sensualmente displicente no traje exíguo que apenas permitia uma blusinha curta e um Jeans abaixo do umbigo, seios soltos, nem fartos nem poucos, apenas o suficientemente belos para que um justo, como eu, a olhasse...
    Ela sabia e gostava disso, embora eu achasse que havia um certo desprezo pela minha pessoa... e esse era o nome do jogo! O flerte dos opostos, dos imponderáveis... o tesão aumentando entropias no meu coração. Ela? Nem sim, nem não... fazíamos que não nos notávamos, especialmente, deixando no ar uma incrível energia de ligação... era importante que assim se perpetuassem as coisas pois o risco de cedermos poderia nos levar ao tédio ou a uma avassaladora paixão de efeitos devastadores... Renata...
    Decidi arriscar aquela coisa do tudo ou nada, afinal o que poderia acontecer de tão terrível? O não eu já tinha como certo, o resto seria lucro...
    Pedi a "Mister Feio", no escondido da palavra pequena, que tocasse BEATRIZ , do Chico e fiquei na moita.
    Ela acusou o golpe logo na primeira estrofe, era louca por Chico e BEATRIZ , realmente....
    ".... com os pés no chão...." , eu displicentemente escorreguei entre os convivas, na penumbra de uma réstia e encostei no ângulo reto da parede, quase costas com costas, quase cena de filme francês dos anos 50, seus pés descalços e cabelos à Brigitte me desafiando.
    "... ah! Me diz..." , ela, por talvez sentir minha aura, ou por curiosidade mórbida, ou por simples arrumação do corpo, apoiou a mão esquerda no chão e avançou o tórax e apoiou o cotovelo direito no joelho, criando um maravilhoso perfil para os meus olhos, baixando a cabeça para o chão, como para deixar penetrar totalmente a BEATRIZ pela nuca.
    "... vem, me diz..." , minha mão tocou a sua mão no sem querer querendo do momento. Ela não puxou a sua...
    Entrelacei meus dedos nos seus e, num ímpeto , a puxei lentamente para mim, por entre as minhas pernas, agasalhando metade do seu corpo num colinho de bebê.
    O burburinho ao redor, embora não impedisse uma conversação em tom normal, era o mote para tornar delicioso o momento e eu, olhando fixo nos seus olhos de mar, e querendo desesperadamente ser suave naquele instante, arrisquei:
    - "Deixa eu amar você..."
    Ela, sem lutar ou repudiar, silenciou pensativa e sem nenhuma surpresa, olhando para mim de um jeito doce, sem respostas, sem retorno, apenas se deixou ficar, aninhando-se no meu colo... adormeceu.
    ".... a gente ser feliz...." , todos curtindo a sua , de qualquer forma, sem ligar ao resto, a música no ar embalando desejos e eu, sem saber o que fazer, fiquei ali, congelado, sem querer mexer um músculo, cansado e feliz. Não havia resposta nenhuma na atitude dela mas...
    Paulinho, seu irmão, a viu dormitando e me pediu que o ajudasse a levá-la para a cama de Clarinha, a dona da casa.
    Fizemos isso. Renata aprofundou ainda mais o sono, a noite começou a correr ligeira.
    Eu, sem chance de me fazer mais tardio ainda, me despedi dos malandros, do sarau e da magia, tomei a porta entreaberta e saí... noves fora , nada.







Vito Cesar

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