ELE, O GATO





    Daí, não muito satisfeito com aquela situação, ou talvez não muito convencido da minha determinação, ou ainda, não tendo dado a menor bola para o barulhaço que eu fiz, jogando aquele bagulho pela janela, o gato continuou abanando lentamente o rabo na frente da porta escancarada, olhando por baixo das minhas pernas abertas.
    Eu, senhor do universo, de mãos na cintura e sem camisa, aguardava a reação daquele felino tão desagradável.
    Sei que gatos tem uma sensibilidade estranha para identificar o outro, aquele que o defronta, como se penetrassem na alma do fariseu, e buscassem lá dentro o seu medo mais medonho.
    Eu não podia perder para aquele gato!
    O desconforto entre a minha natureza conciliadora, o meu discurso de mesa de bar em prol de todas as minorias - nelas incluindo os animais - e a minha repentina repulsa por aquele gato, tornaram minha respiração estudada. Aquele gato não.
    Não sei exatamente porque.
    Sempre tive certa reverência por gatos, me parecendo ser animais de uma estirpe refinada, uma casta sofisticada e impressionante de filósofos silenciosos.
    Gatos sempre fazem a coisa certa, dizia sempre a mim mesmo.
    Nunca vi um gato em dúvida existencial, destempero emocional, como via nos cães – que choram, ladram, pela ausência do dono, pela sua chegada..
    Gatos são ardilosos, seduzem-nos sem pieguismo.
    Enfim, gatos não são falsos ou oligofrênicos como outros animais.
    Mas aquele gato em especial me trazia um receio que lentamente fui identificando: era altivo demais, mesmo para um gato. Sua fisionomia de indivíduo determinado superava em muito a tendência à superioridade de um capricorniano como eu.
    Tinha um pelo cinza-esverdeado degradée, que clareava na volta do pescoço, escurecia ao redor dos olhos, tornava-se quase branco na face interna das patas e na barriga. Seu rabo tinha listras num ton sur ton de cinza bastante agradável como composição artística.
    Mas os seus olhos, de um azul impossível, cristalinos, quase translúcidos, me metiam medo.
    Lógico! Era medo o que eu sentia, medo dos olhos do gato.
    Quando ele me fitou diretamente, aquele seu olhar de água me penetrou a alma facilmente. Tentei ser duro à moda dos grosseiros, fazendo barulho, batendo o pé no chão, dizendo todas aquelas coisas de espantar gatos que se diz por aí. Ele não se movia.
    Era surdo o gato, pensei.
    Fiz então gestos amplos, majestosos, me aproximando da porta aberta, na sua direção, pensando levianamente que uma aproximação assim, cinematográfica, minha figura crescendo na sua retina, tornando-se impressionante, o fariam mover-se dali, fugir rápido, uma questão de instinto.
    Nada. Recuei.
    Sentei-me na poltrona giratória da minha mesa de trabalho, lentamente, tentando em vão não transparecer a ele a minha insegurança e completa incompetência em definir aquela situação.
    Resolvi então acender um cigarro. Meu subterfúgio supremo diante de situações em que eu não conseguia saída.
    Cruzei as pernas e dei uma tragada lenta, sensata, acalmando todas as minhas células, recompondo todos os meus pedaços.
    E esperei.
    Realmente nada podia ser feito de melhor. Eu não iria forçá-lo na base de um chega-pra-lá grosseiro, empurrando-o com o pé ou ainda pegando-o pelo dorso, como fazem donos de gatos. Eu não queria tocá-lo. Seria como concordar com ele que, sem sombra de dúvidas, eu era um fracasso como humano, incapaz de procurar soluções mais plausíveis para impasses tão simples.
    Senti o seu olhar me avaliando, perscrutando como mira laser os meus pontos vitais.
    Meu peito de leão! Meu peso de urso gigante!.. ele, um gato.
    Já não mais me importava o tempo perdido com aquilo tudo, já se tornara um jogo de xadrez onde ele havia dado um xeque-mate e eu, incompetente para proteger minha rainha, estava à beira do colapso de deitar meu rei.
    Fui até a cozinha e enchi um pratinho com água, outro pratinho com leite, deixei na soleira da porta..
    Me pareceu que ele examinara a situação com certo desdém mas, sem nenhuma perda de postura, sem nenhum receio de mim ou de qualquer evento que o circundasse, baixou a cabeça sobre os pratos, tomando alguns goles daquela água, terminando por beber todo o leite.
    Ao terminar, olhou mais uma vez para mim e soltou um miado lento, quase inaudível, um miado que chegava aos meus ouvidos com uma humildade que me surpreendeu. Ele estava agradecendo. Me pareceu sincero, afinal gatos são animais francos.
    Deu meia volta sem nem ter tentado entrar, ultrapassar a soleira da porta e derrotar de vez a minha pretensão engaiolada.
    Acompanhei com os olhos o caminhar daquele gato e quando sumiu do meu campo de visão, corri até a porta e ainda vi sua cauda deslizando na parede, descendo as escadas.






Vito Cesar

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