AS MINHAS MENINAS





    Estamos todos aqui.
    Eu, minhas filhas, minha mulher e o silêncio.
    Estamos muito chegados, calmos... agora sim, distúrbios cancelados, conversas resolvidas, e eu respiro aliviado.
    Estávamos muito tensos antes. Tudo girava e a garoinha lá fora me deixava nervoso.
    Lógico que sempre há espaço para qualquer nova avaliação das situações que nos envolvem. As meninas , como sempre, bailavam pela sala criando seus mimos de brinquedo e eu, turvo, pedindo para concluírem a algazarra de uma forma mais quieta... eu queria contar histórias, que seriam inventadas a medida que eu notasse o interesse delas... sempre faço isso... sou bom nisso, nessa coisa de entreter as meninas criando fantasiosas histórias sobre mim mesmo, como se eu fosse um velho aventureiro aposentado, experiente de conhecer o mundo, mentindo desbragadamente sobre qualquer viagem, aumentando geometricamente a progressão das aventuras, ditas com tal certeza e convicção, que elas, as minhas meninas, paravam qualquer coisa que estivessem fazendo para postar-se nos sofás, no chão, nas quinas da sala, para ouvir e brilhar os olhos.
    Duas meninas , minhas crianças, criadas com muito zelo, em duras horas de aprendizado, já que como pai assim, tão participativo, treinei meus talentos para aprender a banhá-las recém-nascidas , adorná-las com fitinhas no cabelo, perfumá-las com aromas infantis... e eu as estava vendo crescer num tempo veloz .
    Minhas meninas.
    Eu sabia que deveria protegê-las do mundo, principalmente do mundo que, há um tempo imenso, havia invadido a vida medíocre da minha mulher.
    Um tempo de violência desesperada, de crime inexplicável... e eu sabia. Sabia o que havia acontecido naquela noite em que estive fora e não voltei até a madrugada, porque havia saído para um encontro de negócios, porque no encontro haveria outras mulheres... lógico, eu precisava distrair aqueles pulhas que estavam na cidade para fechar um negócio lucrativo e me embriaguei, como sempre acontece quando promovo encontros assim, porque era necessário encantá-los e ganhar sua confiança, porque eu precisava participar também da orgia... eu sou bom nisso e eram apenas negócios. Negócios.
    A violência não demorou muito, depois do assalto e do estupro, minha mulher não negociou qualquer reclamo. Arrumou a casa e recolheu alguns destroços da sala, banhou-se e me esperou chegar.
    Reconheci aquele olhar de ódio antigo, igual ao ódio que nutria por mim, lacrado na alma mas que eu sabia bem reconhecer por instinto.
    Nunca entendi porque não se separava de mim. Não me amava, muito ao contrário, me desprezava de um modo tão doente que, talvez, tanto desprezo a imobilizasse emocionalmente. Nosso sexo era impossível, embora se esforçasse em gemer orgasmos fantasiosos, mas sabíamos que tudo era burocrático. Dez anos. Dez anos e nunca tivemos filhos.
    Naquela madrugada puxou-me para o quarto como se estivesse ávida, sem importar-se com a hora da minha chegada, arrancou-me as roupas de uma forma intensa e desesperada. Não fizemos amor naquela madrugada, nós trepamos como animais e eu só percebi a trama quando anunciou estar grávida com um riso estranho, semanas depois.
    Não sei porque isso não me deixou atormentado.
    Ser estéril não era um problema tão grande assim, muito ao contrário, me facilitava a vida. Comia a quem queria sem grandes problemas. Apenas negócios.... eu sou bom nisso.
    Eu me considerava o homem perfeito.
    Minha mulher nunca soube que milagre operou naquela noite. Equilíbrio. Era tudo o que eu precisava... as minhas meninas nasceram resplandecentes, gêmeas quase idênticas, inundando de vida um espaço até então inexistente entre nós dois.
    Mas eu sei que ela as odeia, como odeia a mim sem nem saber porque. Eu preciso cuidar das meninas, protegê-las desse ódio. E nem sei se serei tão bom nisso.
    Hoje estamos todos aqui, lógico, agora calmos, minha mulher guardou a faca rapidamente para que eu não soubesse. Mas eu vi.
    As meninas gritavam e riam, pensando que a mãe estava brincando.
    Preciso proteger minhas meninas.








Vito Cesar

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