Pêssego





    Era pêssego, o gosto da cor na minha boca, gosto de pão doce da tardinha, gosto jovem, fresco... tanto quanto mais eu fechava os olhos e comprimia as pálpebras fortemente, fazendo concurso de resistência comigo mesmo, contando o tempo na cabeça e sorrindo...
    Era pêssego sim, aquele sentimento, quase cor-de-rosa, nem alegria nem lamento, apenas cor de respirar naqueles tempos, cor de sentir o suor friozinho molhando a nuca... cor de amar amor criança, desgraçadamente apaixonado pela pequena que subia a ladeira e desaparecia, todo meio-dia.
    Era pêssego o vento que alisava em mim a velocidade de uma corrida qualquer, casa-rua, casa-padaria, casa-esquina, casa-terreno baldio, casa-meninos vizinhos, corre-corre louco, na procura do nada, que também era pêssego, como eu e o mundo.
    Eu era de lembrança ou de bagunça? Eu era de tempo e respiro, cheiro de chão, de gente, cheiro de meu pai, cheiro gostoso que acendia alegria em mim, uma alegria de Domingo... sim, porque havia domingos naqueles tempos, domingos de sol e de cheiro de pai da gente, cheiro igual a uma imagem de flor, vermelha não-sei-o-quê, que se arrancava do pé e se chupava pelo fundo, um gosto docinho de mel, que era só meu e que eu ia consumindo todo, sozinho, primitivo.
    Eu era o mundo. Eu e a paisagem. Eu, a paisagem e o tempo. Eu, a paisagem, o tempo e os sentimentos. Eu, a paisagem, o tempo, sentimentos e todas as formas que o olhar alcançava, de fora e de dentro... Ser menino era uma tarefa muito complicada, tarefa de menino.
    Eu , galopando ventos de rua, de remoinho de jornais velhos, revoava entre os carros estacionados e respirava com força de aventura. Corria de vento, corria de sonho, corria de alegria e juventude, corria de resistência de não se acabar, corria com que conhecia... não queria chegar, queria correr.
    Minha mãe, companheira de entender, fazia de mim seu projeto, seu conteúdo, não deixando que as coisas duras e impossíveis existissem no meu redor ou na minha cabeça. Não tinha pobreza, não tinha tristeza de luz fraca na sala... tinha meu cavalo de parapeito de janela, tinha meu pão-doce do padeiro português que carregava seu cesto nas costas, meus gibis de heróis que eu ia colecionando e acumulando, no troca-troca com os meninos da vizinhança: almanaque vale cinco gibis, bimestral vale dois, com capa vale dois sem capa... eu cheirando as páginas dos gibis, sentindo aquele cheiro pra nunca mais esquecer. E nunca esqueci.
    Meu tempo varria as iniquidades, mesmo que eu não soubesse sobre elas.
    Eu corria lado a lado com os tanques do exército no 64 dos homens grandes, que falavam na TV e queimavam bandeiras.
    Começava a perceber que outros meninos usavam calças compridas e tinham nós no gogó do pescoço, começava a sentir o cheiro do corpo das meninas, cheiro de banho da tarde, percebendo o aroma evaporando da pele, vendo as correntinhas de ouro mergulhar entre seios que vingavam como manhã nova...
    Eu, palavra pequena, queria dizer sentimentos mas não o sabia. Colecionava , então, muitos milhões de tantas coisas que mais tarde escolhia para pensar, no escondido do quarto entre cobertas de frio e carinho.
    Olhava o teto e suas paralelas, querendo apagar lentamente o dia e mergulhar no sono, como é de lei para quem fez tantas coisas e está cansado. Na manhã ir à escola, aprender conta, língua, geografia, comer polenta no recreio, pedir explicação à professoranda que se baixava na minha mesa e deixava impune o decote e a bundinha dos seios , que eu queria beijar... brincar de Tarzã, ou Roy Rodgers, fazer cartucheiras de jornal e prendedores de roupa, fazer máscaras de mergulhador de queijo catupiri , inventar um herói para meu irmão mais novo e rolar com meu cachorro Leão...
    E era ela.
    Saia azul, plissada, camisa branca, EP no bolso, sobre o peito esquerdo. Não havia esse peito antes das férias. O que teria acontecido com ela nas férias passadas?
    Uma transformação dramática que me derrubava. Não bastava apenas ser mais corajosa na fila da vacina, não bastava apenas ser a mais linda menina. Tinha que ter alguma coisa que me distanciava, humilhava pois, no meu ver de menino, aquilo iria arremessá-la num futuro que ainda não era meu, roubá-la de mim.
    Eu não sentia transformações em mim, não me via com os músculos divididos dos outros meninos, com as pernas já vizinhas de pelos enrolados, voz mudada. Eu era péssimo como referencial de mim mesmo...
    Aquilo começou a atormentar meu mundinho na sala de aula. Eu resvalava nas mesas, ficava desatento dos assuntos, ficava pobre de mim.
    Passava longos períodos contraindo o rosto para olhar para ela pois imaginava ficar mais bonito e mais velho. Isso meu causava cansaço de expressão, músculos do rosto doídos... Era muito dolorido ficar bonito.
    E ela não notava meus esforços, minhas deixas e sugestões, muito provavelmente por que estávamos distantes, geograficamente, na sala de aula e , no meu ver, mais ainda na escala evolutiva.
    Sofrer paixão naqueles tempos era ter dor física.
    Voltava para casa abatido, sem muita vontade de almoçar, jantar, ficava encolhido num canto de sala, numa quina de cama, sem sair, sem correr, sem comer pão-doce.
    E eu sonhava que ambos voávamos pelo espaço, cor- de-rosa e azul, de mãos dadas, ela com sua saia plissada, eu com meus gibis debaixo do braço, minha capa de SuperHomem... eu apontava para ela os grandes monumentos do mundo, monumentos de revistas de fotos enormes e coloridas... pousávamos em Keóps , comíamos pipoca e novamente alçávamos vôo rumo a qualquer coisa. E eu ouvia o seu riso.
    Era um riso de não se esquecer, discreto, cheio de dentes bonitos e perfeitos, sua pele era limpa como alguma coisa mais limpa do mundo, que eu não sabia o que era mas que tinha absoluta certeza de que existia.
    Quando acordava, o tormento voltava, a impressão daqueles peitos crescendo a cada dia, me jogando no infinito, fazendo com que o som do seu riso fosse ficando mais distante, como naquelas imagens montadas de filmes, me deixava mais e mais triste.
    Minha mãe, conhecedora de assuntos de silêncio, percebia tudo e me completava de carinhos, coisinhas especiais, coisas do meu gosto, mas ficou muito preocupada quando a professoranda pediu que fosse ter uma conversa na escola.
    Nenhum reclamo especial, disse ela, apenas o menino fica muito tempo olhando o nada na sala e, repetidamente suspirava, um suspiro tão longo e profundo que já a estava assustando. Ela nunca tinha visto nada semelhante e era conveniente procurar um médico ou qualquer coisa assemelhada. Esse menino tem um problema sério.
    Eu procurava o silêncio.
    Era curioso procurar o silêncio naqueles tempos, mas havia um lugar que, entre o meio-dia e as duas horas da tarde, ficava totalmente silencioso. Sem carros, sem gentes, sem sons de coisas ocasionais, apenas o vento que vinha de mansinho pra fazer carinho.
    Era uma elevação na construção do colégio perto de casa. Ela subia como um morro, mostrava horizontes próximos, paisagens baixas de bondes pequenininhos passando sem som. E eu quebrava o silencio com um ruído interior, meio anasalado, meio mantra, só para testa-lo, só para feri-lo, para saber se ainda estava comigo.
    Eu queria parar ali. Não mais crescer ou levantar dali, não mais voltar ao real para sofrer de amor. Ali nada me alcançava, nem os peitos dela. Fechava os olhos e levantava os braços, com as mãos espalmadas para o céu, sentindo o vento me passar por entre os dedos. Eu estava no topo do mundo, um mundo enorme e que era só meu.
    Minha mãe, sabedora dos acasos, sensibilíssima das causas filiais, detectava em mim todo o sentimento e, talvez, entendesse desses assuntos, já que, menina um dia, amara desesperadamente um coleguinha de rua, a quem a sorte, um dia, levara num caminhão de mudanças, desses que a vida prega na gente.
    Em segredo, fez com que a mãe dela nos convidasse para um refresco na tarde, em sua casa, num desses dias em que a tarde se faz especialmente dourada, o calor diminui seu fogo e o vento, sempre morno, se torna fresco, como o sopro de um ventilador à sombra.
    Me contou ela sobre a novidade em doses homeopáticas, dizendo que se encontrara com a mãe da menina no acaso do meio da rua e esta a havia convidado para um refresco com bolo em sua casa.
    Enlouqueci. Não dormi, não chorei, não ri, não corri e todos os eventos da minha natureza, aquela que eu habitava, pausaram suas artimanhas de me entreter e inebriar.
    Parei em tempos e espaços múltiplos, rodei pela sala, sacudia-me o coração, poderoso, incômodo, querendo fugir do peito pela boca, saltitar pela sala, ganhar a porta e o mundo, engarrafar o trânsito.
    Vesti-me com os carinhos de minha mãe que estampava um sorriso brando no rosto, um rosto limpo, sem manchas, lábios rubros, desses de mãe da gente e me sentei na sala, contando segundos, subdivisões deles, aguardando, aguardando...
    Saímos de mãos dadas, eu e minha mãe, belos e majestosos, andamos levemente entre as ruas que se cruzavam, secundárias de avenidas, de ruelas, pelo beco da feira, cruzando o mesmo jornaleiro, a mesma padaria, a mesma lojinha de miudezas e eu achava que todos paravam para nos olhar, cumprimentar , tirar chapéus e abanar lenços.
    Minha mãe era o meu orgulho e, assim, um eu muito garboso estancou na frente da porta da casa dela, uma casa de porta e janela, numa pequena vila de subúrbio, que tinha uma pracinha interna, um obelisco com uma cruz de cristo enorme e todo o sol e toda a sombra de várias árvores no centro.
    O vento anunciou nossa chegada com uma lufada mais forte que deslocou a janela, que bateu por dentro em alguma coisa de metal, que retumbou seu eco na pequena sala, que despertou o silêncio, trazendo uma mulher até a porta, que nos recebeu com sorrisos planejados, me concedendo olhares de compreensão e malícia indisfarçados .

    Nada mais me comovia ou incomodava! Que viesse ela com seu riso de conluio (minha mãe, ah, minha mãe...), que o tempo mudasse de repente, que caísse um temporal daqueles de varrer as ruas, de limpar as cores, que viesse tudo e mais alguma coisa!... meu coração era maior do que eu e me suportava, batia-me ruidosamente nas têmporas, balançando minha cabeça sem que eu pudesse disfarçar... mas nada disso importava! Eu estava ali, no fim do jogo, na marca do penalti, aos 44 minutos do meu segundo tempo.
    Conversaram elas, as mães por um tempo desconfortavelmente indeterminado, eu cá pensando que o coração poderia parar a qualquer momento, quando então toda a coragem e ímpeto me fugiriam por entre os poros. Começava a sentir uma vontade enorme de fazer xixi, mas o meu brio não permitia divulgar qualquer notícia nesse sentido. Ah, tempo adormecido!
    Mas que diabos! Onde andava minha amada? Queria enfrentá-la cara a cara, sem mais medo dos seus peitos, do pêssego da sua pele, do infinito dos seus olhos, cor de bola de gude esverdeada... onde estava ela?
    E ela surge lá de dentro, rápida, articulada, como quem estava acostumada a visitas no meio da tarde, vestida numa calça comprida que denotava formas e curvas, numa camiseta de malha branca fininha, que desenhava acintosamente o relevo do sutiã bordado.
    Ela me cumprimenta, sorri com certa malícia, senta-se a meu lado e entabula algum assunto planejado, falando das aulas, da professoranda, da bagunça na aula de matemática...
    Eu de calças curtas de linho azul marinho, camisa de xadrez marron, sapatos de bico fino, me senti mais uma vez humilhado, pequeno, menino demais... Seu sutiã de rendinhas e seus peitos, sua calça comprida, sua camiseta de malha colada!.... ah, humilhação!... senti ímpetos de tomá-la nos braços e de roubar um beijo na boca, desses violentos, com língua e tudo, de mais de trinta segundos, igual nos filmes de cinemascope... queria mostrar o quanto eu já era igual a ela, autônomo, crescido, mas, desgraça: ela estava um pouco mais alta que eu e eu nunca me dera conta disso, nem na fila da vacina!
    Para mim bastava! Era o fim! Nada de palavras doces e tentar pegar na mão. Tinha medo de ser rechaçado e, assim, chegar ao último pilar da humilhação total!
    Fui educado, com a cabeça balançando ao ritmo do coração endoidecido, reagi de forma coerente aos quesitos que ela copiosamente colocava no meio da tarde, falei que as matérias das aulas não eram difíceis, que eu gostava de redação, que não gostava de matemática... ela sorria delicadamente, planejadamente. Será que estava acostumada a visitas de outros meninos? Será que estava escolhendo alguém? Talvez a sua timidez fosse tão intensa quanto a minha. Lógico! Mulheres tem um jeito diferente de sentir as coisas, de mostrar os seus sentimentos... eu queria morrer ali mesmo, quer dizer, não queria cair morto na sua sala pois tudo ficaria explícito demais. Queria evaporar, desaparecer, desintegrar meus átomos e reintegrá-los lá em cima do morrinho, onde o mundo era silêncio e era meu todinho.
    Mas a realidade é cruel. Eu continuava ali, sem palavras, puxando para baixo as pontas da calça curta de linho, com vergonha de minhas pernas ainda um pouco lisas, cruzando-as e querendo deixar à mostra as canelas que começavam a ficar cabeludas, meu único trunfo contra os peitos dela.
    Ela apoiava o corpo com as mãos no sofá e balançava para lá e para cá, me fazendo sentir que estava ansiosa para levantar-se e sair dali. Droga! Como eu estava apaixonado, completamente possuído de todo o sentimento!
    E eu disse a ela que ficasse a vontade, não se prendesse por mim, etc... e ela pegou na palavra e foi lá pra dentro da casa, fazer alguma coisa de mentira, me pedindo licença algo envergonhada. Fiquei ali, sozinho. Toda energia do meu corpo se esvaindo, um suor intenso minando de cada poro, meu coração desacelerando, desacelerando... fiquei estático , olhava a janela que se movia de vez em quando com o vento, as folhas das árvores cruzando suas sombras no meu rosto. Eu não quis bolo nem refresco.
    Minha mãe, feiticeira de me conhecer, apressou o fim da tarde, agradecendo o convite, formalizando as despedidas, prometendo protocolarmente voltar para uma outra visitinha, etc... de mãos dadas voltamos todo o caminho sem trocar palavra.
    Soube, depois que ela chorou quando saí.




    Este conto participou do concurso de contos da revista Playboy de 1998




Vito Cesar

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