Moço preto
 

O riso frio gelou o coração do moço.
E riso frio é coisa séria.
Dependurou-se na tragédia imediata daquele riso tosco, cafungou qualquer coisa escondida na mão, deu pro mundo e adeus. Foi-se.
Só se via as costas dele se perdendo.
Gente que tinha, imaginou cedo que aquele moço era bandido de jornal e se benzeu.
Benzimento apropriado, pensou gente, já que, pelo sim, pelo não, Deus não dava mole pra benzedura de mortal de vez em quando e bandido ruim, de jornal vespertino era coisa pra gente se benzer três vezes.
De dentro da sombra o moço chorava umas mágoas lá dele.
Devia ser coisa importante, dessas que ficam pisando no peito o dia inteiro pois o cujo tinha os olhos muito molhados, molhados mesmo, molhação que só choramento desconjuntado possuía.
Ele pensava e juntava umas idéias tristes, dizendo dentro que o mundo era mau , que gente não gosta de gente, que gente pensa que gente é coisa de desprezar... ele era feio, pobre, preto e burro e daí não adiantava nada ser moço e ter todos os azuis dentro do coração, todas as flores dentro dos olhos e todo pedacinho de amor que encontrou nas estradas, arrumados na vivência dele. Ninguém ia chegar perto mesmo.
Daí o moço resolveu desmergulhar das sombras e voltar na praça.
Vou desgraçar logo essa pinóia! Vou arrebentar logo essa tramela dos diabos e enfrentar essa gente cheia de coisa ruim dentro do olho!
Vou descarregar meus sonetos bem na cara deles, encher eles de colorido lindo e de palavras de perfume, vou escancarar uma beleza tão medonha que nenhum deles já pensou na vida!
E tome verso prosa, e tome tessitura de palavra, e tome metamorfose de moço no meio da idéia!
Nessa violência inteira, gente ficou de boca muda.
Queriam falar mas não tinham mais boca, queriam andar mas as pernas fincavam, queriam desescutar mas as orelhas aprumavam...
Êta bandidinho metido a besta, gente disse!
Coisa preta de senzala! Vade retro!
Ladrãozinho de palavra preciosa! Diz cá, de quem tu roubou essa rima intensa? Isso é palavra de branco que se preza!
Moço logo viu que gente não escuta o diferente, o desigual de si mesmo, gente quer pensar que tudo é a beleza de caucasianismo.
Daí ele resolveu piorar a prosódia: Deu um riso cheio de dentes pro mundo.
Na boca abriu-se um arco cheio de colunas de marfim, um branco tão branco, que nem o branco mais branco de toda a humanidade possuía!
Suspendeu logo a enxurrada de palavras que ele tinha, circulou entre a gente que, parada, ofuscava!
Abriu a camisa mostrando o peito esquerdo que pulsava e sambou uns batuques imaginários, só pra aumentar a zombação.
O silêncio doía mesmo. Gente, com feitio de estátua, ficou lá, estagnada.
Moço rebolou mais um tiquinho, sentindo apenas o afago farfalhante da camisa peito aberto, que o vento hasteava.
Pensou de novo que era preto, pobre e burro e abotoou a camisa. Deu um tapa na própria cara pra deixar de ser trouxa e querer dizer as coisas.
Foi andando pra dentro das sombras, inventando uma nova modinha.
Desembestou no tempo. 
 
 


Vito Cesar
 
 

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