BALEADEIRA
O menino revira a volta da borracha
na forquilha, pneu cortado de tirinha, que encontrara pelos matos na angústia
de traquina, fazendo assim uma armadilha pra assustar a passarada.
Primeiro uma, depois a outra,
amarradinhas as duas pontas com barbante de embrulho, olhava ele , esse
bagulho, com a ponta da língua no canto da boca, bonezinho virado,
testa suada e uma zoada filha da mãe de mosquito infernizando o
juízo.
Feito tudo, esticada a borracha,
medida a exatidão, a tensão, a largura, mirando no meio do
Y da mão esquerda, riu-se satisfeito e em silêncio.
Levantou as calças de
fundo arriado, e saiu procurando pedrinhas duras no chão. Tinham
de ser todas iguais, o que dava um trabalho danado, guardando no bolso
algumas, desprezando tantas, ajuntando muitas, fazendo peso no bolso e
chacoalho na passada.
Era tardinha, era a mata, era
o filtro de raio de sol cortando as folhas das árvores de manga,
de coco, de goiaba, de caju... era um ventinho que vinha de curva, na sombra
de uma mangueira que parecia a sala de uma casa grande.
O menino sentado, no canto da
sala, encostado no tronco, esperava.
O vento, os mosquitos espantava.
Passarinho de peito amarelo, voou
por cima das galhas de um baobá muito velho e pousou no ninho, onde
meia dúzia de passarinhos-criança berravam seu pio de bicos
abertos, olhar sem ver nada, corpinho sem penas, asinhas de nada, rebatendo
entre si uma ciranda afiada.
Mãe passarinho de peito
amarelo, trazia no canto do bico, coisinhas do mato, insetos pequenos,
pedrinhas minúsculas e um pouco de água.
Como quem entende uma ordem,
um sinal, cada qual recebia seu tanto de tudo e se encostava num canto,
fazendo silêncio, pegando no sono, que era o seu ofício naquele
momento.
No piscado do instante, o ninho
era calmo.
Mãe passarinho de peito
amarelo, num galho bem perto, vigiava a natureza.
Passarinhos são bichinhos
preocupados.
Menino dormia um sono raso, porque
meninos em tardes amenas, no meio da mata, não podiam dar-se ao
luxo do sono pesado porque o sonho melhor dessa vida era o sonho de sonhar
acordado.
Qualquer barulhinho, de folha
seca virada no chão, de ronco de bicho, de cantar de cigarra, qualquer
mudança suposta, nas cores da mata, de tempo de nuvem, de ronco
da própria barriga, abria um olho sem sono, no seu rosto de sarda.
Nem viu passarinho voando por
perto, porque passarinhos são bichos misturados na natureza e só
à certeza da vigília aprumada, na sorte do átimo do
segundo, podia fazer perceber tal leveza.
Mas naquele instante, seu olho
apertado fisgou a imagem do peito amarelo de um passarinho na galha da
árvore.
Mas que sorte danada!
No escuro lusco-fusco da sombra
da mangueira, pegou a baleadeira com jeito suave, colheu uma pedra no fundo
do bolso, aprumou entre os dedos, esticou a borracha, mirou bem no meio
da forquilha arrumada e fotografou o peito amarelo do passarinho na galha.
Mãe passarinho de peito
amarelo nem viu.
Sentiu a surdina do teco entre
as penas do peito e nem pensou em nada. O que será que passarinhos
pensam nessas horas extremadas?
Caiu entre folhas secas no chão
dessa mata, quase sem fazer zoada.
Menino correu mais que o vento
do cão, chegou perto pra ver a premiação da empreitada.
Em pé, fôlego controlado,
baleadeira estocada no bolso de trás, sobre o estofado de folhas
secas do chão, viu passarinho de peito amarelo caído de asas
abertas, imóvel, vencido de nada.
Menino ajoelhou, com certo receio,
nunca que na vida tinha feito tal proeza e nenhuma certeza de coisa nenhuma
lhe dava conforto ao coração de instinto. Mexeu as folhinhas,
fez ruído de boca, mas o passarinho de peito amarelo não
comunicava.
Menino sentiu um peso no peito.
Havia algum defeito naquela jornada.
Todo menino que conhecia, também
fazia das suas com passarinhos de peito amarelo.
Porque ele, então, a sentir
um buraco profundo no peito?
Pegou passarinho de peito amarelo
na mão espalmada, virou de lado, de costas... Passarinho estava
largado, ainda quentinho, seu porte de bicho esperto da natureza havia
sido roubado pela pedrinha da baleadeira.
Menino, de olho apertado, deixou
rolar por entre as sardas, duas lágrimas pequenas. Que fazer com
passarinho? Deixa-lo ali, sozinho, coberto de folhas secas? Jogá-lo
no mato? Come-lo assado?
Era tão pequeno!
Se o comesse talvez se sentisse
justificado! Não, passarinhos de peito amarelo não mereciam
morrer desse jeito.
Passarinho tremeu na mão
do menino.
Passarinho fechou as asinhas,
acordado.
Menino, no susto, caiu sentado
no chão.
Passarinho de peito amarelo,
como o susto de um raio, saiu voando e se perdeu nas alturas da copa do
baobá.
Menino acendeu como luz no infinito.
Seu respiro trancado a ferro, soltou um alívio.
Menino ficou contente de não
ter transformado certas coisas sobre as quais não entendia nada.
Tinha medo do pecado. Tinha medo do remorso. Achou que Deus lhe havia ensinado
mais um passo na vida.
Deu meia volta na mata. Estava
muito cansado.
Pegou a baleadeira no fundo do
bolso de trás, olhou bem pra ela e, antes que tudo desmoronasse,
que a sua consciência o impelisse e a jogasse no mato, a guardou
novamente no bolso de trás achando que seria ótima para derrubar
latinhas de cima do muro de casa e dar susto nos gatos da vizinhança.