Noite, nada mais



    João não tem mais sexo.
    João está velho, nem enxerga mais direito, sente dores no peito, na coluna e nas pernas... não pesca mais João, apenas silencia diante do mar.
    Maria mais ele.

    Não há mais atrevimento nos olhos do homem João, nas mãos de garra que puxavam a rede... ele apenas fecha os olhos e sente o vento nas folhas, o sal no ar e o molhado das ondas, morrendo na planta dos pés.
    Maria mais ele.
    É doente, João.
    Doença maldita, diz Maria mais ele.

    Está velha Maria, a tez geográfica lembra que o tempo curtiu de sol e de vento seu corpo macio. Seus peitos não apontam mais para a lua, nas noites de candeeiro e luzes de estrelas.
    João mais ela.

    Maria... grande Maria... boa parideira, riso fácil para qualquer palavra de estranho, juntando a saia nos joelhos e chamando pra prosa qualquer pescador com noticias novinhas de aventuras do mar.
    João mais ela.

    João não procura mais por ela, para as coisas da noite que fazem suar, não tem mais o atrevimento de alisar suas coxas por baixo da mesa na hora da janta, já nem há mais janta... os meninos cresceram... Mas, no alto da noite, durante seu sono cansado, ainda procura Maria com a mão e se acalma.
    João tem médico, toda Segunda.
    Maria mais ele.

    Se apressa Maria para confidências de médico, reclamações de João, que não come direito, que não toma remédio, que chora no sono profundo se tenta sonhar... João dói, diz Maria, com olhos pequenos. Maria carrega João pelo braço, pede licença , abre passagem... João está leve, pensa Maria, está leve demais...

    João não diz nada. Nada pela dor física, pela limitação do corpo, pelo vai-e-vem das consultas, toda Segunda, nada pela saudade que sente intensa no meio do peito, saudade dos erros e acertos, saudade do jogo das ondas levando a jangada, ao gosto do mar. João não diz nada.
    Maria mais ele.

    Maria de ferro, de mãos grossas, mulher sem nenhuma palavra na boca, de desesperança... Maria , velha/criança, precisa ser fácil, ligeira, lembrar dos cuidados mais elementares no trato do homem, seu homem, seu irmão , seu pai...

    João procura seus olhos, no meio das gentes que passam pra-lá e pra-cá, no mar da cidade. João não entende a cidade... é um mar revolto. Maria esquiva, covarde, seus olhos e apressa o passo, sabendo de tudo. Sua cadeira de vime, seu cachimbo de osso, seu chapéu de palhinha, seu cordão de pescoço com uma medalhinha de Nossa Senhora, sua janela entreaberta para os sons da noitinha, sua cachaça de pau velho... tudo a contento, na medida dele.

    Maria nem sente mais calafrio, desejo escondido, molhação nas partes, quando sonhava um sonho atrevido. Maria nem sonha. Maria espera.
    João mais ela.

    Onde estão os meninos ? Maria algumas vezes se lembra, mas João nunca pergunta. Ele não lembra, diz Maria, ele nem está aqui... procura no escuro a espuma das ondas e o sentido do vento. João quer o mar. João quer correr, mas não pode, Maria não deixa, o tempo passou, João quer gritar mas desiste, Maria não chora, resmunga coisas antigas, descarrega em João coisas do passado, caladas no fundo, abraça João com a força intensa das mulheres que sabem amar...

    A noite não perdoa e cai. João na cadeira de vime, olhar na janela. Maria na soleira da porta, respirando o vento e lavando as mágoas.
    A noite mais eles.






Vito Cesar





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