Porque
será que escreve o Rubem Fonseca?
- Eu já
acho que o homem muda, quando escreve.
- Como assim...?
- Eu na
verdade não saberia dizer ao certo esse tal _como _ é como
se eu soubesse intrinsecamente sem saber dizer, entende?
- É...
há momentos, realmente, que eu mesmo não consigo expressar
o que sinto ou como é que a coisa caminha dentro da minha cabeça.
- É
como se fossemos duas pessoas, sabe? Uma vive e sente e não sabe
dizer o exato desse sentimento. O outro senta-se, reflete e escreve. O
pior é que escreve tão intensa, tão magnificamente,
tão abrangentemente que, aquele sentimento que não sabe verbalizar,
aquela imagem que ficou gravada na alma, se torna tão maior do que
aquilo que deveria ser que acaba tornando-se outra coisa, não mais
aquela...
- Será
que é isso mesmo?
- Bem...
pelo menos foi isso exatamente que eu quis dizer... e isso não
conta porque foi uma coincidência...
- Que coincidência
que nada.... há pessoas como você que conseguem dizer o exato
do sentimento, cara!
- Que exato?
Existem sentimentos exatos?
- Olha...
isso já é um outro assunto....
- Não
senhor! O mesmo assunto: sobre o que nós escrevemos, afinal? Sobre
sentimentos exatos? Idéias definitivas que carregamos dentro de
nós? Eu digo que não, meu amigo! Nós escrevemos, sim,
sobre o inexato de cada sentimento, essa imponderabilidade de energias
que circulam dentro do nosso peito, nossas aflições mais
aterrorizantes... escrevemos para nos perdoarmos, meu caro!
- Como assim,
nos perdoarmos?
- Escrever
é a nossa catarse, meu querido! Alguns caminham quilômetros
a pé procurando respostas, outros afligem o corpo com torturas,
outros até fogem de viver e alienam-se com gravatas apertadas! Nós,
por termos preguiça de caminhar, talvez por acharmos que a tortura
física é uma bobagem ou até que a gravata aperta demais
o pescoço, escrevemos, meu chapa. Tentamos expiar nossas mazelas
através da escrita, do verbo, da curva estranha descrita pela parábola
do pensamento!
- Mas, você
falando assim, colocando dessa forma a coisa, parece querer me dizer que
todos os caras que escrevem são geniais, especiais, um tipo de gente
que foge aos padrões... Seriam uma elite pensante, como muitos costumam
referir?
- Sei lá
de elite pensante, cara! Sei lá dos gênios!... lógico...
você se depara com literatura ruim paca, com muita bobagem, muita
perda de tempo com coisa rasa _ além dos oportunistas, lógico
_ mas basicamente todos são especiais... o medíocre escreve
pelo mesmo motivo que o gênio escreve e, dentro do seu coração,
talvez, consiga mais profundamente o seu intento, sua libertação.
Eu até acho que o gênio, quanto mais escreve, mais se enreda
na dicotomia das culpas, punições ancestrais, etc., o que
torna esse perdão um perdão postergado para o próximo
parágrafo, que nunca vem. A cada palavra a fome, a cada sentença
o desejo atávico de dissecar mais, mais...
- Como na
música popular?
- ... pode
ser... a música popular tem que ser observada sob dois ângulos
_ eu acho: uma é a música que vem das tradições
históricas e a outra é a que nasce da intelectualidade...
sobre qual delas nós falamos?
- Bem, a
dos compositores...
- Ah! A
que nasce da intelectualidade!
- Podemos
dizer que sim...
- Bem...
guardando as devidas proporções... as letras da música
popular também entram nessa coisa toda...
- Chico...
Caetano... Gil... Tom...
- Grandes
exemplos....
- Embora
com a mesma raiz _ o perdoar-se _ todos os que você citou procuram
suas próprias imagens através da palavra.
- São
todos gênios, cara! Todos!
- Esse negócio
de gênio é uma abstração nossa, cara... deixa
disso, dessa bobotização dos indivíduos...
- Estão
no mesmo patamar da MPB...
- Esquece
isso, cara.... eles são mais interessantes e mais geniais exatamente
naquilo que não são... eh eh eh !!!
- Como!!!????
- Na sua
essência, meu chapa! Na alma... e olha que eu não acredito
que exista a alma mas, esses caras devem Ter.... Veja o Chico... todo o
seu trabalho reflete uma inquietude contida, reativa a tudo o que seja
impróprio, abusivo, anti-ético... enquanto divide/não
divide homem/mulher em qualquer coisa que resuma a beleza inatingível
e que possa ser traduzida em verso... O trabalho do Chico não é
político, essencialmente... ele estava político naquele momento
histórico também mas não necessariamente... Caetano
e Gil, grandes exemplos de coisas diametralmente opostas... enquanto Caetano
desafia o léxico, desnuda a moral calhorda e acovardada, remexe
feridas com requebrados pop, Gil consagra a vida e a beleza... nele tudo
é otimismo lírico... Já o Tom... o Tom é o
Tom... a procura da harmonia, através da música alcançando
a vida....
- E todos
estão procurando a mesma coisa, não é? Perdoar-se?
- Veja bem:
nós que escrevemos não o fazemos impunemente. Ninguém
apenas gosta de escrever... sempre tem algo maior por trás desse
pano e eu acho que é o perdão. O perdão através
do reconhecimento, através da compreensão daquilo que está
sendo dito... ..... ..... mas, me diga uma coisa: porque será
que nós estamos falando disso? Como começou essa conversação
desavisada?
- É
que eu comprei um livro do Rubem Fonseca?
- Comprou?
- Comprei...
é a COLEIRA DO CÃO...
- E daí...
?
- É
que eu queria saber porque que ele escreve tanto...
- Sim, mas
porque o Rubem? Tantos outros escrevem tanto... ou mais...
- É
que esse é o livro que tenho no momento e ele é o autor...
- E daí?
- É
que você começou com esse discurso de perdão e etc.
...
- Sim...
eu parti de uma idéia filosófica minha e... mas qual foi
a pergunta que você fez, mesmo?
- Eu apenas
perguntei porque o Rubem Fonseca iria querer pedir perdão?