Contando... Vito Cesar





A alforria






    - Gosto de Marias porque são mulheres fáceis.

    Sinto que erro e corrijo, meu senhor...:

    - Marias são mulheres fáceis de encontrar e de tocar.

    Tocam-me todas as Marias que conheço ou que ainda estão por vir ao mundo.

    Uma Maria tem a brevidade do imediato e ilumina caminhos tortos, alimenta com seiva aquele a quem enternece e expia os pecados e conflitos desse um.

    Dá-me uma Maria e eu terei um Reino!

      - Entenda-me, senhor... essa Maria de quem lhe falo... Encontrei-a quase moribunda numa vala da Rua das Calçadas.
      Estava podre, a Maria e ao vê-la, antes que me enxotasse o asco, uma ternura enigmática me deteve!

      - Estava recostada no amurado nu de uma casa antiga e solitária, balbuciando palavras loucas. O sujo do seu rosto não espantou-me tanto quanto a luminosidade de seus olhos acesos, mesmo que a morte instigasse o corpo e o tempo tentasse definir seu futuro... Antes de tocá-la, tocou-me o cheiro agridoce da sua aura, cheiro dos despossuídos, fronteira a qual minha coerência e dignidade teimavam em não ultrapassar....

      - Um ímpeto humanitário desceu-me à consciência, meu senhor, fletindo meus joelhos ao seu redor, fazendo-me palpá-la para testá-la viva ou morta, tal era grande aquele momento!

      - Fiz-me cauteloso, olhando de soslaio sobre os ombros, ainda temeroso diante da oportunidade de ser descoberto por algum desafeto ou conhecido, que me caçoasse um monte, que não entendesse nada dali e que, resgatando antigas paixões de vingança, escolhesse aquele momento para dar-me um troco.

      - Resisti ao ímpeto do desprezo, toquei-lhe as vestes com a mão nua e senti-lhe a frágil estrutura, verificando-lhe a textura que, de tão tênue e leve, encantou-me sobejamente, mesmo diante de tamanha impossibilidade.

      - Num gesto quase que impensado, recolhi-a da sarjeta quando uma chuva miúda atrevia-se a nos alfinetar a pele.

      - Confesso, meu senhor, que temi por sua vida mais ainda que dantes, pela chuva miúda, pela fragilidade da carne e por seus olhos de brilho incandescente.

      - Tomei-a nos braços e a acomodei em minha carruagem, mesmo diante da relutância do meu cocheiro em transportar tão bizarra criatura.

      - Levei-a com toda presteza uma das casas de minhas posses, na Rua dos Primogênitos, sede e destino de minha vida solitária, posto que, solteiro que sou, costumo reservar parte do dia em planejá-la em detalhes, pessoalmente, para o dia em que finalmente, venha a escolher uma dama de estirpe que me traga algum sorriso nesse meu rosto apagado.

      - Supliquei às criadas, que olhavam-me incrédulas, que lhe tirassem as vestes, e a imergissem em uma banheira de cobre, que a aspergissem com sais aromáticos e a vestissem com os melhores panos que pudessem encontrar pela casa, fruto de antigos devaneios meus!

      - Veja, senhor, que sou um gentil-homem e tenho decência. Venho pedir-lhe que me deixe Maria para que viva comigo...

      - Depois de tudo arranjado, vestida e alimentada, recebi Maria à mesa da janta e alimentei-a com frutos maduros de um pomar que cultivo, pelo terreno da casa... Sou um homem de médias posses, senhor e tanto a quero comigo, que posso oferecer-lhe um dote generoso, por essa Maria...

      - "Sabeis então da origem dessa Maria que tanto desejas, senhor? Sabeis que se trata de um bibelô proibido? Sabes com quem falas e a quem propões tal empreitada? Não sou sequer parente de Maria, meu jovem, sequer a tive em meu Leito, apenas arranquei-a dos braços da mãe – apenas uma criança àquela altura, vivida na mesma sarjeta, não por um ímpeto caridoso e sim por precisar de mais uma criada que pudesse ver crescer como serva e, quem sabe, poder servir-me seus favores quando estivesse mais graúda.... Mas, qual nada! Tanto mais bela e mais crescida surgia, mais rebelde e arisca se tornava!

      - Qual não foi então minha surpresa, meu jovem, certo dia de maio, disse-me ela aos prantos estar perdidamente apaixonada por um jovem que apenas vira de passagem, surgido de alguma ruela, de algum beco sinistro.... Ah! Tamanha foi minha ira! Expulsei-a de casa, como enxotasse a uma cadela!

      - Sei que vagou às cegas pela cidade, pois línguas maledicentes não tardaram a trazer-me as novas. Evitei o sofrimento, amaldiçoando-a firmemente, impedindo-lhe a entrada sorrateira em meu coração mais uma vez. Venci, caro jovem, venci meus instintos e desprezei-a com meu silêncio...

      - Agora vens até mim, pobre diabo! A querer indulgências por aquela que negou-se uma melhor escolha, furtou-se ao conforto e a um leito aquecido e permanente...."

      - Mas, senhor! Como podeis ser tão cruel e vingativo... passa-se o tempo, vai-se uma Maria e outra virá pelo mesmo caminho... porque tamanha dureza de coração!

      - Essa Maria, meu senhor, tocou-me a alma e eu a amo perdidamente... quero-a com todo o meu fervor... sinto que quando a abraço, seu coração pulsa junto ao meu no mesmo ritmo, como se me adivinhasse... Devo dizer-lhe que minha Maria, essa tal a quem desprezastes tão sordidamente, hoje recuperada sua plena saúde, encanta o sombrio da minha casa, hoje iluminada por sua presença de luz... contou-me ela uma história parcial sobre seu desencanto, sobre o seu sofrimento... e essa sua história trouxe-me aqui à sua presença, com o coração aberto, arriscando-me a oferecer-lhe tal dote para libertá-la.... Ela ainda sofre, pois sua presença a desperta no tardio das noites mais frias....E o que aqui encontro? Um homem rancoroso, cheio de remorso e ódio... mas a que tanto ódio, a que tanto sentimento, meu senhor?

      - Tu nunca saberias, pobre tolo! Nunca... mas vo-lo dizer para que se aninhe eu seu coração uma idéia mais sobrenatural do que qualquer mera suposição: O jovem por quem ela perdera o coração, eras tu, pobre diabo!

      - Vai e fica-te com ela.... creio que o destino amarra as linhas das almas... fica-te com ela!






Vito Cesar




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