ou De Como Dona Severina Foi Abandonada Por Severino De Tal, Seu Marido ou Logo Agora, Que Eu Tenho Que Sair? (Fenômeno humano, Riqueza de profundas feridas, equinócio de reais fatalidades. Borbulhante maravilha incandescente, Retrato de sua própria banalidade) -vcf- -Severina Maria. Só. -Só? -Só. -Idade, Maria? -45. -Foi moça com que idade? -10 âno, nhô sim! -As regras sempre foram boas? -Sempre atrasa um pouquinho, né mãe? A mãe de Severina tem a pele geográfica dos milênios, o silêncio da efígie e o grunhir de um ruminante calmo. Nada a abala, nem o passar dos anos. Está acima de qualquer coisa. Riqueza de filhos tantos, que distribuiu pelos quatro cantos do mundo, alguns guerreiros, outros pensadores, alguns renegando sua origem, outros reverenciando memórias, tantos mortos por doenças desconhecidas, outros gordos e pachorrentos, acobertados por sua asa protetora desde o início dos tempos... Mãe de Severina. No seu olhar se esconde a consciência de que nós, aqueles estranhos, transformados pela palavra douta, não sabemos de nada. A mãe de Severina não quer destruir o quinhão de esperança que ainda resta no universo imaginário de sua filha. Olha a mim com um desdém antigo, como se já me tivesse encontrado nas esquinas da vida. Eu a reconheço. Tocha acesa na escuridão dos tolos, Maria de uma Nazaré sertaneja, fincado em lascas, cascalhos, leitos secos de rio, cactos, mandacarus, tatus e rastros de raposa. Ela, que já foi traje e alimento de homens antigos, que se fartaram tanto e nela depositaram suas virtudes genéticas.
... e assim falava aquela mulher impossível, gesticulando o seu miudinho, abrindo os braços em vôos rasantes pelo meu olhar sonolento e a meio pau. Doutor... essa palavra ficou ecoando em mim. Eloquência consagrada pelo tempo e por inocentes. Eu sabia disso e não tinha a menor vontade... corrijo, o menor talento para apagar dos corações e mentes daqueles humildes, tal heresia. Estava cansado. As quarenta e oito horas sem dormir já haviam plantado em mim um desânimo bestial, um misto de tédio e insônia cristalizada e, os tantos assuntos pendentes do dia, assuntos pessoais de grave suporte, haviam sido suportados heroicamente nesse processo... Apenas a vigilância irrestrita da consciência estava impedindo delírios sem controle. E agora, ali, aquela mulherzinha.... falando pelos cotovelos... violentando minha lógica e razão com aquelas verdades simples, verdades que eu não estava disposto a dissecar... o tempo passava, minha fome aumentava, o cansaço físico se arrastava dentro de mim, os assuntos outros infernizando minha razão, o medo da manhã seguinte (chegar, recomeçar de onde parei, sem respostas, sem soluções...), a saudade dos filhos, o sono... Mantive aquela velha expressão clássica de doutor, eqüidistante entre o inócuo e o profundo, mantendo um sorriso discreto, pretendendo ficar atento às lamúrias das duas mulheres... Precisava parar com aquilo! Não interessava aquela conversa, o sofrimento...... Não importava com o que elas se preocupavam ou como viviam as suas vidinhas miseráveis...! O carro me esperava na oficina, minha mulher estava ficando louca, querendo compreender o sujeito com quem se casara, meu filho já não via há dois dias!... Meu peso estava muito acima da média... costumava suar demais em dias amenos... faltavam formulários naquele consultório.... Queria ouvir uma música, qualquer uma, contanto que fosse de boa qualidade, daquelas relaxantes, mantras que se pode escutar deitado numa bóia no meio da piscina. A mãe de Severina continuava sua resenha amarrotada, circulando braços pelo ar, navegando mãos por entre paredes, espremendo o olhar a cada passagem mais dramática... o tempo passando no relógio... tantas pessoas ainda para ver... tanta coisa para pensar antes do ilusório fim de expediente... dinheiro... onde estava o dinheiro que poderia dar fim àquela impossibilidade dramática? Dinheiro para exames mais sofisticados, para indicação de terapêuticas mais eficientes... sentia-me impotente, o elo frágil de uma corrente gigantesca. De um lado a instituição dos homens grandes, do outro o restante da humanidade que eram Severina e sua mãe e, eu, miseravelmente colocado entre ambos, mentindo... Severina ouvia sua mãe com detida atenção, meio que sorrindo, como se nada estivesse compreendendo das minúcias, com aquela expressão de certeza que apenas os fanáticos apresentam, mas acreditando piamente que no plano geral da cena, o doutor, sua mãe o estado e, primeiramente, Deus, haveriam de solucionar seu problema. O doutor era grande. O doutor era bonito. Severina era silêncio, como se fosse essa a sua fortaleza. A prudência dos tolos. Pensei que podia ouvir seus pensamentos.
O torpor do sono mal vivido, da madrugada consumida em tédios e ruídos adventícios, em repentinas invasões da madrugada por emergências malfadadas, impregnava minha alma causando um liga-desliga na consciência. Precisava ir embora dali, desaparecer, sair correndo os corredores, o estacionamento, desabar desesperadamente em minha cama e decretar, em caráter irrevogável, uma noite de sono eterno... Assumindo a complacência dos inúteis, tentei:
- Veja bem, minha senhora, nosso caso aqui não é de soro não. Ela precisa... bem, a senhora não vai entender mesmo... não, não é possível, só na próxima semana... A mãe de Severina a pega pelo braço, como quem pega um velho fardo, respira fundo e me olha profundamente nos olhos, com um olhar de faca afiada, como que convergindo toda compreensão filosófica do universo, com a sabedoria de quem já previa.
E ia falando, a mãe de Severina, falando, andando e arrastando sua filha sala afora, detalhando suas estratégias. Enquanto sua voz ia sumindo nos meus ouvidos, eu olhava o relógio de pulso.
|