Contando... Vito Cesar



O umbigo de Adão




    - "..., que coisa nenhuma, sô!... sem essa, garoto!"

    A coisa estava ficando meio fora de controle.

    De um lado Everaldo, com sua bíblia na mão, suava nas têmporas pois o clima estava realmente muito quente, um verão malvado estava vingando no pico do meio-dia, sem sombra de árvore, sem água fresquinha e sem nenhuma esperança de reconhecimento para o coração desse moço, iniciado nas palavras santas, crente absoluto de que, ali dentro daquelas folhas, nos seus meandros, todas as respostas esperavam para serem reveladas aos homens.

    De outro se encontrava o velho Sebastião Caiana, dentro dos seus oitenta e nove anos bem vividos, até que aquela moléstia miserável lhe tolhesse algumas primazias comuns a todos os mortais.

    Tinha uma sonda na uretra, uma agulha portentosa enfiada na altura do pescoço, perto da clavícula, que drenava um soro meio amarelado para dentro de suas veias. O doutor havia feito uma "janelinha" entre as suas costelas e havia um tubo enfiado nela pois Caiana tinha, também, água nos pulmões.

    Aquele médico havia feito aquilo pra salvar a sua vida. Ele não acreditava em nada disso. Acreditava sim, na dor.

    A dor que sentia já não era a coisa repulsiva que o havia atormentado no início. Era uma companheira que tinha seus momentos de ira, seus momentos de calmaria. Tinha que conviver em harmonia com ela, depois de tantos anos rebelando-se.

    Caiana não acreditava em mais nada.

    A urina saia pela sonda, vermelha, cheia de sangue e resíduos de remédios incontáveis, injeções multicoloridas que a sua imaginação havia se preparado para aceitar, já que não havia outro remédio senão ficar ali, prostrado na cama.

    Everaldo, meio imberbe, estava ali, perto do seu leito, com aquele livro de capa preta e letras douradas, destilando fé em doses homeopáticas, tentando aparentar imparcialidade diante da dor de Caiana, embora seu coração estivesse horrorizado desde o momento em que entrara na enfermaria, um vão enorme onde jaziam cerca de vinte leitos desarrumados, ambientado num aroma misto de medicações e secreções impossíveis.

    - "... o senhor é meu pastor, nada me faltará..."...

    - "... só se for seu pastor mesmo, meu filho... que nada falte a você pois, pra mim, tanto faz como tanto fez..." Caiana tentava se acomodar melhor no leito para dar uma olhada naquele rapaz. Ele estava de saco cheio com aquilo mas, nada tendo a fazer, a não ser a espera do inevitável, pensou em se distrair um pouco, trocando idéias com aquele miolo-mole juvenil, pensava ele, rindo-se com o canto de boca.

    - "Porque não aceita a palavra do senhor, meu velho? Agora, no seu leito de agonia, se encontra a grande oportunidade de redimir-se com o senhor Jesus..."

    - "Vade retro, guri! Que agonia o quê, rapaz! Estou aqui só de passagem, esperando uma melhorinha porque tenho muitas coisas pra fazer ainda nessa vida..."

    - "Aceita o teu destino, meu filho..."

    - "Mas essa agora é muito boa! Olha bem pra mim, rapaz: tenho idade para ser o seu bisavô! Mais respeito comigo, viu?"

    - "Não existem essas fronteiras, para os desígnios do senhor!"

    E toda vez que Everaldo lançava no ar uma dessas frases de efeito, olhava para o teto, como se olhasse um céu esplendoroso, alteando a voz para que os demais internos ouvissem claramente as suas palavras, que tentavam, pausadamente, alcançar a essas outras ovelhas desgarradas.

    Caiana lançara um olhar para Everaldo e rapidamente dera uma geral no ambiente, constatando que muitos dos seus companheiros, uns ainda atentos, outros meio moribundos, acomodavam-se também no leito como quem aguardasse o sermão da montanha, ou coisa parecida.

    Caiana pensava.

    Ah, Caiana, Caiana... que vida você teve, Caiana!

    Em vinte e cinco, aos quinze anos, já comia mulheres na zona e bebia cachaça de folia, dançando no meio da rua, quando a madrugada se vestia de moça e deixava o sol clarear tudo.

    Não existia universo e nem planeta, o mundo era aquilo que conhecia e era maravilhoso caminhar por ele com passos fortes... ainda lembrava do ruído das chapinhas da ponta do sapato e do calcanhar, doando música ao silêncio, ritmo às passadas, suas calças de linho bandeirando com o vento que vinha do cais, devidamente amarrotadas de charme, um charme que ele ampliava a cada sorriso enquanto arrumava o punho da camisa sob a manga do paletó, acarinhando abotoaduras douradas, que eram presente de uma certa dona de quem ele gostava um pouco.

    Depois veio a guerra e tudo o que ela trouxe de bom. Uma viagem transatlântica, uma estadia na Itália, muitos soldados americanos que trocavam cigarros por barras de chocolate e notícias de batalhas que nunca chegou a enfrentar pois chegara pouco antes do fim.

    Everaldo não arredava pé do leito daquele velho.

    Ele mesmo era um exemplo da transformação que a palavra operava na vida dos homens.

    Estava ali em missão, uma missão que lhe fora confiada sob medida por sua tenacidade, voluntariedade, seus recursos cênicos e sua voz poderosa. E ele sabia usar tudo isso, no nome do senhor.

    Aos vinte e três anos podia até dizer que tinha uma experiência absoluta. A miséria da família numerosa o havia deixado numa solidão intransponível.

    Era comum sumir, quando criança, por horas e até um dia inteiro e só chegar no dia seguinte, sem que lhe dessem por falta.

    E nisso as más companhias. E nisso a vagabundagem. E nisso a fome. E nisso alguma droga que a matasse e que o levasse bem pra longe da dor, um lugar qualquer, qualquer um, que o mantivesse em êxtase e onde pudesse sonhar.

    Mas o sonho sempre acaba em pesadelo, isso ele também sabia.

    E nisso a insatisfação. E nisso a procura de drogas novas que substituíssem as velhas pois elas já não atendiam mais aos seus desejos. E nisso as armadilhas da vida, a polícia, o choro da mãe, as pancadas na delegacia, as cicatrizes nas costas.

    Mas um dia um homem de Deus veio até ele e lhe deu a mão salvadora, expulsando de si o demônio que operava em sua vida. Mostrou-lhe a palavra e, desde então, nunca mais separara-se dela, fosse onde fosse, fizesse o que fizesse.

    Não deitava mais com mulheres. Deixava a lascívia desse desejo do demônio afastada de si, purificando-se nos estudos bíblicos da sua igreja.

    Ainda se impressionava com o poder da casa do senhor.

    Quando ali entrava a paz o assumia por inteiro, seu coração se alegrava e tinha vontade de cantar todos os hinos e de orar todas as preces. Havia alegria no seu coração pois a palavra vinha para alegrar a vida dos homens e anunciar a redenção dos justos.

    Ele havia chegado a tempo. Ele era um justo e hoje doava essa benção que lhe fora concedida aos pobres de espírito, àqueles em quem o demônio operava e destruía.

    Não, ele não sairia dali tão facilmente. Não podia desistir daquela alma sofrida.

    Everaldo havia mergulhado nesses pensamentos de si mesmo e quase se esquecera de continuar sua missão, vertendo parábolas, recitando versículos, desnudando a bíblia, a palavra clara do senhor.

    Caiana olhava-se num caco de espelho, remanescente de algum outro paciente que ali estivera antes dele.

    Cabelos ralos, Caiana! Brancos, Caiana! Aquela figura refletida não era ele senão pelo olhar.

    Aquele olhar ele reconhecia. Um olhar entre o maroto e o sábio, entre o aprendiz e o professor. O mesmo olhar de quando vivia da jogatina de cartas, clandestina para os olhares punitivos da sua mãe.

    Nem sempre ganhava, nem sempre perdia. Sempre blefava.

    Conseguiu viver algum tempo dessa ocupação até que a modernidade resolveu assassinar a malandragem, recolhendo as navalhas do imaginário do povo, desmistificando a contravenção informal em que viviam, ele e uma turba acalorada.

    Muito cedo ele entendera que era uma espécie em extinção. Bons tempos aqueles, Caiana!

    Depois? Oras! Teve que se enquadrar no social, arranjar uma ocupação, uma companheira, porque aquela vida de boemia o fizera perder a saúde aos poucos e ninguém mais dava crédito a um malandro meio aposentado.

    E conseguira um emprego de carteiro, emprego esse que sustentou uma casa modesta, criou filhos e lhe rendeu uma aposentadoria miserável, que o obrigava, já na meia idade, a fazer biscates de toda ordem.

    Mas tinha sido um Homem! Amara profundamente a mulher que escolheu quase a contragosto, numa noite em que sua mãe o colocara contra a parede, quase que impondo uma união, mesmo sem papel passado.

    Mãe é mãe.

    Mas fizera sua escolha de livre vontade, para a alegria da velha.

    Mesmo assim, sem papel passado, que era pra mostrar a todos e a si mesmo que quem mandava na vida era ele.

    E tivera filhos. Alguns meninos, algumas meninas, a todos dando tudo de si pois, malandro que é malandro, adora crianças, especialmente as suas. Era comum espalhar-se com eles pela sala, formando uma confusão de pernas e braços e risos e gritos e alegria, para o horror da mulher, que tinha que recolher tudo que espalhavam ao redor. Que filhos, Caiana!

    Mas, mesmo dentro da rotina de uma vida acomodada, Caiana ainda encontrava tempo e um jeitinho esperto de visitar seus antigos logradouros de luxúria desavisada.

    Tinha ainda, pendurada no pescoço, uma corrente de ouro grossa, de origem duvidosa, que gostava de exibir faiscando de brilho, por entre a camisa desabotoada.

    Gostava de sentar-se na noite de sofás amplos de antigos redutos, abraçado a mulheres antigas e recém chegadas na lida, sempre sorrindo e falando alto de antigas histórias.

    Sua mulher, muito mais sábia, fingia dormir a cada manhã que Caiana chegava meio de porre, dormindo sem tirar a roupa.

    Ela nunca dissera nada. Ela dormia.

    E Caiana, vendo aquela mulher deitada, se enternecia.

    Coisas da vida, Caiana. Coisas da vida.

    Ele queria não ser assim, desse jeito sem jeito. Mas era e já que ninguém dizia nada, porque não procurar algum refresco na ilusão?

    Nunca fora um ausente. Estava sempre em cima do lance, com moral elevada.

    Adorava o olhar da mulher percorrendo seu dorso enquanto tomava banho. Ela sabia fazer o seu homem se animar para a noite.

    Tinha levado um choque tremendo quando soube da morte dela, enquanto estava internada com problemas de coração.

    Que fazer, Caiana? Era a vida.

    Nessa noite de falta, sua primeira noite de solidão do amor, saiu de casa e se meteu a beber e jogar cartas e se abraçar com todas as mulheres. Em homenagem a ela.

    Seus amigos, as mulheres, acharam estranho aquele homem que sorria intensamente, enquanto lágrimas desesperadas marejavam seus olhos. Era o Caiana, pensavam.

    A sonda na uretra queimava como fogo.

    Everaldo, em pé, procurava não perceber que Caiana mexia naquela sonda, pra dentro e pra fora. Caiana tentava enganar a dor de uma forma irracional.

    O velho era uma figura patética.

    Excessivamente emagrecido pela doença, pele colada nos ossos, faziam com que Caiana tivesse movimentos lentos, torporosos.

    Mas Everaldo apenas procurava encarar o olhar daquele velho, um olhar aceso, matreiro, pálpebras que riam, como se ele estivesse fazendo piadas interiores.

    - "O senhor é meu pastor... nada me faltará..."

    - "Pois muito bem. Escuta aqui, garoto, eu quero resolver logo esse impasse!"

    - "... não existem impasses, quando se tem o senhor no coração..."

    - "Quem foi o maluco que deixou você entrar aqui, meu filho, pra infernizar a vida da gente? Afinal, estamos aqui para ficar na paz, longe do burburinho do mundo. E olha que esse mundo já não está tão interessante assim pra se existir, viu? É melhor mesmo que tudo acabe logo. Apaga-se a luz. Ponto final..."

    - "... e como você espera entrar na outra vida? Sem arrependimentos?"

    Caiana se acomoda melhor no leito, como se fosse se preparar para dar um bote no rapaz. Seu olhar intensifica ainda mais o brilho e a vida parece resplandecer dentro dele.

    - "... que outra vida, meu filho? Que outra vida!?"

    - "... a última morada, filho de Deus! Você não pode entrar no reino de Deus, sem arrependimento! Senão estará condenado a arder no fogo do inferno, onde Satanás estará esperando com todas as suas legiões...!"

    - "Inferno? Que Inferno, meu filho? Você já viu alguma coisa pior do que essa vida? O inferno é aqui!"

    - "Quando o senhor criou Adão..."

    - "... pois muito bem! Chegamos num assunto que me interessa!"

    - "E eu estou aqui para guia-lo nesses assuntos, no nome do senhor!"

    - "Pois bem... então me responda uma coisinha só: Adão tinha umbigo?"

    - "Como? Acho que não entendi... Adão..."

    - "É. É isso aí: Adão tinha umbigo?"

    - "Bem... eu acho que sim... todos nós temos umbigos... acho que Adão também tinha... certamente..."

    Everaldo respondia meio que automaticamente aquela saraivada de observações estranhas, aquele questionamento repentino o havia deixado atordoado... Umbigo de Adão?

    - "Bem, se Adão tinha umbigo é porque nasceu da barriga de alguém, certo? Lógico, pois todo mundo que nasce tem um cordão no umbigo que cai depois, certo? Esse cordão é que fica ligado na mãe, certo?..."

    - "Bem... eu acho que devo consultar o pastor da minha igreja..."

    - "Pois é, meu filho.... vê se vai logo porque eu estou ficando muito cansado"

    Dizendo isso, Caiana virou-se de lado e tentou dormir pra sonhar com os tempos antigos.

    Everaldo saiu dali lentamente, refletindo matematicamente sobre o quesito que o velho lhe havia imposto.

    Colocou a bíblia no bolso do paletó, afrouxou a gravata e, de repente, começou a sentir uma vontade danada de puxar um baseado.






Vito Cesar



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