Contando... Vito Cesar



ANATOMIA DA SEDUÇÃO




    No encontro das coisas vivas, a troca de órbitas e fluidos é irremediável.

    Eu não queria aquela coisa incômoda de estar ali sentado com aquela mulher. Não naquele momento, não daquele jeito.

    Não sei. Fiquei ali a contragosto, falando de coisas superficiais e olhando o relógio para dar sinais indiretos do meu tédio, fixando o olhar num ponto fora do eixo dos argumentos, mas a mulher parecia não perceber ou então minha aura a havia tocado de alguma forma especial.

    Era uma antiga conhecida, de tempos púberes ainda, alguém em quem eu nunca pousara olhares precisos, embora fosse uma bela mulher, uma beleza burocrática por certo, mas ainda assim bela.

    Vivia na roda da turma da esquina, adjuvante das histórias, uma sombra que acompanhava nossas extravagâncias juvenis e se estabelecia nelas com uma suavidade que não incomodava a ninguém e, portanto, nunca ninguém a excluía.

    Naquele momento, após dez anos de distanciamento, mesmo dentro de um encontro que suscitava exclamações de afeto amistoso e sugeria relembranças de todas as coisas que nos identificavam, ainda a sentia como aquela sombra de antes.

    Mas era uma bela mulher e, por talvez querer ser atencioso por não ver nenhuma saída honrosa para qualquer despedida estapafúrdia naquele momento, comecei a prestar mais atenção a ela, mulher.

    A mim pareceu que os anos lhe haviam conferido os retoques necessários para completar a obra que a beleza anunciava já na puberdade. Observei-lhe o colo, agora maduro, a largura das ancas, a elegante forma de cruzar as pernas, longas e bonitas, a curvatura do queixo, o olhar aceso como dois faróis, as mãos delicadas e precisas na gesticulação dos assuntos e comecei a prestar-lhe atenção.

    Chegou a despertar uma certa ternura, a pausa que fazia para ouvir meus relatos dos últimos tempos, coisas que havia feito, caminhos pelos quais havia passado e isso, de uma forma maquiavélica, fazia com que meu ego se inflasse.

    Sou daqueles caras que gosta de impressionar silenciosamente, aguçar o imaginário das mulheres com pequenos toques, pequenos arremates de gestos, sempre colocando um sorriso meio canalha no canto da boca, porque sei que elas se excitam com uma pitada de canalhismo - afinal, ninguém é de ferro.

    As vezes sinto-me meio Bogart na tela e reservo esse veneno para momentos em que a caça está mais ou menos encurralada.

    Nesses momentos, saco de um cigarro e falo entredentes alguma coisa suave, com o cigarro nos lábios, no momento preciso em que a chama do isqueiro inflama e o trago primeiro interrompe a fala, propositadamente.

    Com ela utilizei esses recursos e acrescentei alguns lances aperfeiçoados, colocando a cadeira de lado, ficando mais próximo e aproximando a cabeça dos seus lábios, num claro sinal de que o ruído do ambiente estava afetando a minha compreensão das suas palavras e, ao mesmo tempo, testando o nível da influência de todos esses artifícios, criando uma intimidade quase ousada, o que permitiria uma retirada estratégica emergencial, caso, num ato falho qualquer, houvesse sinais de rejeição. Eu daria uma desculpa qualquer.

    Mas, ao contrário, ela aceitou esse jogo, mergulhando nele com tudo.

    Eu ria, episodicamente, de qualquer coisa que pudesse parecer engraçada e abria os braços, encostava no respaldar da cadeira e sorria sem ruído, para em seguida e rapidamente, me aproximar tanto do seu rosto e pronunciar bobagens da juventude, como segredos melindrosos, tentando sentir seu aroma de pele. Tirando vantagem da minha estatura, pousava, de vez em quando minhas mãos sobre os seus joelhos e a olhava de frente, para depois de alguns segundos retira-las como se o gesto fosse casual.

    Aquela inocência toda permanecia ali, na minha frente, honesta, firme e totalmente enlevada pela fantasia. Isso me encheu genuinamente de uma ternura absoluta, de um carinho que crescia a medida em que eu começava realmente a ouvi-la pois, devo confessar, nada do que ela estava falando desde o momento em que nos encontramos casualmente, eu estivera ouvindo.

    Comecei a notar sua a voz em tons médios, seu jeito meio sem jeito de confessar que, naquele tempo antigo, nutria desejos sobre mim.

    Ela estava plena, eu, completamente cheio de artifícios, tentava seduzi-la para, talvez, coleciona-la num canto qualquer do peito, como mais uma medalha ao mérito de auto-afirmação.

    Dali para o óbvio foi apenas uma questão de quando.

    Quando? Porque não agora?

    Onde? Porque não lá em casa?

    Seu sorriso dizia que sim, um sim que poderia invadir o mundo e acordar a todos os sonolentos!

    Minha casa tem o jeito perfeito.

    A sala é simples, pouquíssimos móveis. Sempre procuro colocar todos os requintes no meu quarto.

    Um spot de luz num canto escondido lança um degradée malicioso demais para não ser percebido por nenhuma da minhas vítimas. A cama, feita sob medida, nem de solteiro nem de casal, fica exatamente no centro do quarto, exatamente para permitir todas as manobras possíveis de corpos que se digladiam.

    Dois banquinhos pequenos ficam de sobreaviso num canto de parede qu

    e é para entrar no circuito de coisas mais inusitadas, arrojos mais primais. Livros de alguns autores que gosto se espalham desajeitadamente, alguns entreabertos, outros fechados com marcadores, ou sobre uma cadeira ou sobre um móvel qualquer, displicentes para dar um toque sofisticado e confiável – afinal, alguém que costuma ler e demonstra isso, deve Ter um algo mais, um espírito elevado. Isso as deixa inebriadas e mais confiantes.

    O estéreo eu aciono com o controle remoto e, sempre com a fita no ponto, começo a noite com La mer.

    Na verdade tenho certa fixação pelos anos 40 que conheci no cinema. Toda a trama que invoco é noir o bastante para criar, também em mim, toda a névoa necessária para o abate.

    Ela, contida mas visivelmente excitada, entra em minha casa com passadas lentas, perscrutando tudo, inspirando o aroma reinante (sempre odorizo o ambiente com fragrâncias de eau du toillet, as mesmas que costumo usar no corpo), sentando-se numa cadeira de braço que tenho na sala, exatamente para servir a essas minhas visitas especiais, uma espécie de preparo.

    É uma cadeira confortável, estofada e macia, onde a vítima relaxa e se acomoda, tornando-se mais ainda vulnerável.

    Mas o seu jeito me incomodava. Alguma coisa não estava bem e aquela sensação de desconforto inicial voltava a fazer vida.

    Eu tenho certos princípios.

    Procuro conduzi-las o máximo possível mas nunca me permito forçar situações. Nunca dou o primeiro passo sem segurança nenhuma sobre o total domínio da situação ou, por outro lado, sem nenhum sinal positivo de que a vítima está no mesmo clima, pois tudo é uma questão de igualdade. Sempre haverá a possibilidade de que uma mulher esteja acreditando que, realmente, está ali apenas para uma visita ao amigo, ao cara interessante, para trocar idéias e, talvez tomar um chá.

    Por isso eu nunca insisto. Por isso sempre aguardo até que o enlevo as aproxime. Que venham a mim!

    Canalha?... é... talvez haja alguma razão nisso... mas um canalha honesto.

    A sensação de insegurança começou a ficar mais forte em mim, meu instinto me dizia que eu tinha que aguardar mais, que aquele caminho poderia ser perigoso de alguma forma.

    Tenho absoluto horror por mulheres que se despem rapidamente. Não importa o quão maravilhosas elas sejam, com suas curvas perfeitas e seus seios fartos. Tenho meus rituais.

    Ela mantinha-se eqüidistante, nem ousava alguma manobra nem deixava de parecer algo alheia. Seu olhar era clara sedução mas a contenção dos seus gestos me obrigava a tomar certas iniciativas.

    Pensei – cá comigo – que essa batalha seria muito trabalhosa, que eu teria que insinuar alguma coisa mais ousada, talvez me aproximar dela, toca-la de alguma forma.

    Aproximei-me dela casualmente e a levantei da cadeira. Peguei seus pequeninos ombros e a trouxe para mais perto, olhando-a nos olhos, tentando intimidá-la e quebrar a barreira da minha crescente angústia. Cometi a primeira infração às minhas próprias regras.

    Nunca tomo iniciativas francas – afinal, elas é que são levadas a um ponto em que tudo que venha a ocorrer é de fato natural.

    Beijei sua boca, primeiro mordiscando o lábio inferior de canto a canto, depois mergulhando a língua timidamente, sugando suavemente sua saliva.

    Ela respondeu ao beijo sem intimidação, aceitando a minha intensidade. Abraçando-me ao sentir-se abraçada, colando-se a mim, ao ser puxada contra meu corpo.

    Ai cometi a segunda e mais grave infração.

    Tomei-a pela mão e a conduzi ao quarto, abracei-a de um jeito mais selvagem, mas não agressivo, começando a desabotoar sua roupa. Ela, sem estranheza ia me permitindo tudo.

    Fiquei até um pouco constrangido quando toquei sua coxa na minha e notei que ela reconhecia meu membro excitado e o comprimia contra si. Eu sabia que não deveria ter parado ali, naquela noite e ter aceitado conversar com ela.

    Fazer amor é sempre um aprendizado. Por mais que tenhamos experiência, a próxima experiência sempre será um mistério, sempre há o inusitado, aquela coisa que nunca percebemos antes, um sabor novo e inebriante, que nos leva a sermos aprendizes, mais uma vez.

    Na manhã eu não a queria deixar partir, não sem mais algum repeteco, uma confirmação de que, tudo aquilo que havia ocorrido, não seria apenas um devaneio meu.

    Mas ela foi, assim mesmo.

    Fiz com que prometesse encontrar-me mais tarde e, de fato, mais tarde nos encontramos no mesmo lugar.

    Repetimos a dose um cem número de vezes.

    Bem, essa é a história que conto, do jeito que eu a vivi.

    Nosso filho acha engraçado e me diz que sou careta e ultrapassado, toda vez que eu conto.

    Eu não entendo.

    Ela sorri.






Vito Cesar



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