MOMENTOS



    Nesse momento me encontro sereno.
    Raios de sol fenestram a vidraça do poente, filhos rodeiam, com seus sons familiares - vozes que reconheceria mesmo amnésico - escapes tonitroam na distância e continuo sereno.
    Essa serenidade me veio como um presente-surpresa, com brisa morna de verão, todos os fluidos do corpo aquietados, funções fisiológicas saciadas, o tempo goteja e eu nem ligo.
    Sinto-me como em estado de fotografia.
    Não é uma serenidade conquistada, como no relaxamento depois do gozo. Sinto-a como quem articula origames, detalhadamente, cada poro deitando fluxos, cada músculo ordenando movimentos sensatos, cada pensamento organizando-se em seus compartimentos e o sentimento, esse que às vezes me assuta, germina aceleradamente como o pé de feijão do conto.
    Descrubro que é desses espasmos que nasce minha escrita, meu verbo reflexivo.
    Faço releituras mais clarificadas dessa atitude e sinto que não me é dada uma escolha para manter a opção do silêncio, se há eco em mil vozes que me sintonizam no virtual de um espaço inventado.
    Descubro que escrever, além do prazer orgástico , me amplia como indivíduo e, ao mesmo tempo, cobra de mim o preço alto da continuidade, da coerência.
    Por quanto tempo poderá, aquele que escreve, ser um continuum assim, coerente?
    Somos gerentes daquilo que é atávico?
    Nesse momento, sem nenhuma concessão histriônica, sem nenhuma barreira estética, quero abraçar a toda humanidade que me resta - espaços, corpos, sentimentos...
    Li hoje uma carta de Ariano (Suassuna) publicada num jornal. Pedia ele, encarecidamente, que lhe permitissem trabalhar em sua obra , que considera definitiva, um romance que vem perseguindo desde os seus 12 anos (conta hoje com 72 anos).
    Nele explicava que, em suas atribuições de professor e ex-secretário de estado por Pernambuco, se havia enredado em muitos compromissos , entre palestas e aulas-espetáculo e que, havia percebido que havia cobranças poderosas nesse sentido e, ao continuar aceitando-as da forma como chegavam - em profusão - talvez não conseguisse reiniciar seu romance e conseguir concluí-lo ainda com vida.
    A serenidade de Ariano. Permitir expor-se à malta dos inconformados, que irão crucifica-lo por isso.
    O exercício lúdico da escrita , me passa nesse momento - sereno - como um saciar de sede, reflexo condicionado da manutenção da ordem do corpo. Meu filho me pede moedas, o outro se esconde no quarto. É a vida me pedindo atenção.
    Devo desmergulhar de mim e jogar algum jogo novo. Também me dá prazer. Também me sacia.




Vito Cesar


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