Uma face escarnada se projetou da janela e, como uma câmera, plano por plano, zoom no olhar demoníaco, atravessou um raio de sentimento.
Tempo? Noite.
Era vento, aquela suavidade que adornava as árvores ao redor, mesmo quando a imposição das esperas insistia em tudo tornar calmaria.
Espera? Música.
A face escarnada ouvia música em algum lugar, bem fundo.
Primeiro os braços entre as grades, depois o apoio das mãos, depois puxar o corpo e trespassá-lo entre espaços de ferro, exíguos, definitivos.
O corpo? Nu.
Qual rigor estético poderia vencê-lo naquele instante? A nudez límpida, absoluta, elegante, daquele corpo em movimento, insinuante, misturava-se às sombras de todas as coisas e seus matizes.
A sorte? Sempre passa ao largo.
No sorteio do aleatório, a fuga de um demente é coisa de raro acontecimento. O elemento surpresa não causou espécie aos sonolentos senhores da guarda, diurnamente tão marciais mas, ingenuamente, tão infantis na calada da noite.
O demente, e sua face estranha, esgueirou-se entre os elementais e mergulhou profundamente na escuridão.
Das emoções vividas naquele instante, apenas a explosão interior de liberdade fazendo-se presente, desafiando medos de criança, enrijecendo músculos, rangendo dentes.
A incrível distância entre a ilusão e o fato, vencida num único gesto. Liberdade era estar nu entre as folhagens e o vento, no seio da noite, bailando alucinadamente com gestos sem rima, com voz sem palavras, sem nenhuma conseqüência invadindo o pensamento.
O tempo, até então estancado, fez presença de aço no seu contentamento. Sentia frio, repentinamente.
Seu instinto perscrutava as distâncias. Casas longínquas, luzes de cidade, sons distantes de coisas elétricas, sons de motores rangendo distâncias, sons de folhas aplaudindo a natureza com o vento, o som dos seus passos atritando a terra.... sons amplificados, nessa recém descoberta de intimidade com o todo, que ficara aprisionado do lado de fora da sua jaula por tanto tempo.
Contratempo? O mundo todo.
Seria necessário cruzar alamedas, galgar barrancos, assaltar muralhas de casas poderosas, recolher trapos, cobrir o corpo, recompor a vaga idéia de um homem em sua menor dignidade.
Num fragmento infinitesimal do seu ser a vontade imediata de retornar, refazer o caminho, reassumir a segurança da jaula, aguardar os previsíveis maus tratos dos homens estranhos, por serem coisas conhecidas, seguras...
Mas o vento, ah, o vento!
Esse sim, empurrava-o para novos caminhos. A roda de papéis velhos circulando seus pés, num remoinho, o convidavam a dançar. O turbilhão de possibilidades, o açoite de possíveis aventuras, os cabelos soltos, caiam sobre ele como uma festa e todo horror de tudo, antes disso, se perdoava um pouco.
Esquizofrenia. Diziam.
Era santa. Deram-na a ele, como uma pena, forjaram nele esse vulto.
Agora, era um escudo perfeito, poderoso. Agora, seriam perdoados os gestos conseqüentes. Agora, seria consumido inteiro.
Adormeceu entre cansaço e folhagens.
Acordou com o sentimento de um beijo.
Abriu os olhos numa procura instintiva mas nada havia ali que pudesse dar-lhe aquele beijo, senão o sol.
Acordou ainda bêbado de sonho torpe, daqueles que os homens santos condenam nos domingos de confissão, mas que provocavam contorções deliciosas na cama, no vai e vem da maciez dos lençóis.
Havia outros sonhos entremeando suas noites de fantasia.
Seres horríveis com entranhas à mostra, uma mesa posta e sobre o linho, a fome, a ânsia, a gula desses senhores. Sonho porco!
Via-se repasto, sobre a mesa. O vinho, o queijo... talheres de prata, olhares uníssonos, lampejos de ira... tão pouco repasto!
Ah, e havia seus gritos, gestos amplos, tolos, trincar de dentes, olhares, olhares... impropérios.... sobreveio uma luta insana por pedaços de si... eram as loucas, as outras, com seus braços longos no entremeio das grades.
Acordou para um dia inglês. Céu nublado, nuvens uniformes, fazendo o céu parecer um teto baixo... havia o vento fraco, sem vida.... ah! Estava do lado de dentro do mundo agora... um mundo que criava expectativas, possibilidades e isso tudo seria muito trabalhoso dali por diante.