Escutei devagar o que ele dizia e fiz minha alegria e cisma, malandragem e euforia, render homenagens ao homem da fala que gera silêncio no meio do dia, da tarde ou da noite... mentira danada, essa desse eu menino...
É... Sacapema falou.... e andei como ele, arremedando o esconjuro, mesmo pequeno e engraçado, no meio da gente agachada, que arrodeava seus panos, suas falas, seus piscos de olho e braços abertos...
Ninguém me olhava, e era isso mesmo, assim, desse jeito, porque não queria que ninguém me visse mesmo, porque assim eu tinha liberdade de ser eu e ele, ao mesmo tempo.
Nhã-nhã... ah!.. Nhã-Nhã!... quem era tu, figura de sonho que a gente escutava nas rodas de homem?
Nhã-nhã era história de dar exemplo, que Sacapema contava, só pra assustar as querências das moças solteiras, viajadas de lérias das bocas dos moços.
Tudo era condenação e eu ria. Meu corpo fechado de tanta euforia, rasgava o escuro e eu, nu daquelas verdades, corria, corria, junto com o vento, me apaixonando pelo tempo de Nhã-nhã, que de nada nunca imaginava, nada nunca arrependia e que o tempo escondia em passados de história, que era pra ninguém saber da verdade mais verdadeira que aquela alma podia.
Eu inventei uma verdade pra querela de Nhã-nhã, porque era mais bonita e certeira que aquela que Sacopema condenava, naquela noite sem lamparinas e com respiros de medo.
Nhã-nhã não era nada de moça besta. Era uma linda menina de prata, que andava descalça nas águas do rio e que nem mil pesos bem pesados faziam afundar!
Apaixonou-se por um raio de luz, que chegou como espada, por traz da folhagem, beijando seus pés.
E como raio de luz não tem parafuso, perdeu-se ele mesmo iluminando tudo, a mata, as colinas, enquanto Nhã-nhã corria de brincar com o raio, agarrando raízes de pau, pra subir um morrinho, escorregar do outro lado, arrastando sua cor de prata, no meio do nada, na sorte do chão.
Eu sei que ela via, no meio do raio de luz, um moço tão lindo e cheio de estrelas, que só o olhar dela podia alcançar... também cor de prata, também sobre as águas, correndo de braços, sorrindo de olhos de querer chorar, sonhando o corpo de Nhã-nhã, rolando enganchado com ela, rompendo as tramelas do sonho de amar....
Sacapema sabia mas fingia espantar. Sabia de longe, conhecer quando a vida pulsava, no meio das folhas, soltando faíscas de prata e luar.
Sacapema sabia mas fingia espantar. Nhã-nhã, seu sonho de vida, sua paixão mais criança, estava louca e vivia, nas sombras da mata, suspirando poesia que vinha do ar.
Sacapema seguia, no rés das folhagens, as trilhas prateadas dos pés dos amantes, subindo ladeiras, descendo os rompantes de ódio e de medo, de tudo apartar... temia a colheita não querer vingar, temia a chuva não mais derramar, temia o céu todo escurecer e a treva mais densa tudo sufocar... Queria a Nhã-nhã, tomá-la em esposa, gozar no seu corpo o direito de macho que quer saciar... então mil colheitas, então as chuvadas, então mil estrelas no céu de sonhar...
Sacapema, vingador querelante, sitiou num instante aquela donzela sem pudor nem tramela, longe dos olhos de gente, que era pra parecer inocente seu gesto indecente de morte e de dor.
Sacapema não via nada, além de Nhã-nhã dançando na mata, sozinha e descalça. Sacapema não via nada, além da vontade que tinha, do ciúme que vinha, depois da noitinha. Sacapema espera, na beira de rio, a Nhã-nhã no alto da pedra, no viço do jorro de luz que inundava. E inundava até os olhos de Sacapema, aumentando a ira.
Nhã-nhã nem viu, o vulto explodiu, seu corpo caiu na profundeza das águas, que fez remoinho e desapareceu...
A luz, como louca, soluçou raio e trovão no alto da pedra da beira do rio... na noitinha mais clara que a sorte nos deu, naquele dia de eventos que o tempo esqueceu, surgiu cachoeira num rasgo de pedra, na beira do rio que, na noite, era prata e, no dia, sumia.