Contando... Vito Cesar




Meu navio para Bengala



    Há dias quero escrever alguma coisa.

    Todo dia, a mesma coisa : cansaço, sonolência...

    Chegar em casa já é um fardo.

    Alguém me disse alguma coisa que esqueci e era importante, durante a manhã, no meio de outras conversas que não eram minhas. Nelas prestei atenção, obnubilado.

    Remorso no juízo, tento lembrar e não consigo da coisa importante que alguém me disse e que, se não me falha a sensibilidade, era poesia ou coisa correlata. Eu precisava prestar atenção naquilo... quero escrever alguma coisa...

    Sento diante do monitor e ele pisca impaciente. Se, de repente, a energia se vai no meio de alguma coisa genial?

    Vou escrever sobre o silêncio, direi coisas de extasiar sobre o silêncio, descreverei o ruidoso silêncio de noites ociosas, sobre como é chorar em silêncio e lembrarei dela, que me deixou, silenciosamente porque fui um incompetente.

    O cigarro vai ficando amargo. Da latinha improvisada em cinzeiro ele risca o espaço com sua chama bêbada e lenta, e a vejo como quem olha do cais um antigo vapor partindo de Bengala, de uma história em quadrinhos antiga.

    Vou escrever sobre um herói de histórias em quadrinhos que parte em um navio de Bengala e tem uma aventura qualquer com piratas modernos... a luz está fraca ou estou enxergando menos... talvez alguém me ligue e ficaremos trocando idéias inocentes sobre as grandes questões da humanidade e eu terei mais cansaço e sono.

    Vou ao quarto e ligo a TV. Volto à sala e a zoada dos aplausos, dos monólogos, das notícias, vão ambientando todo o espaço que me cerca e eu me sinto como se estivesse no meio de um congestionamento de gentes e prédios, no meio de uma avenida absurda, com coisas me incomodando, distraindo minha atenção do monitor... ha! Me sinto ótimo!

    Eu preciso escrever alguma coisa e essa sensação de pressão e desvario me estimula. Estou no meu ambiente e gozo interiormente a cada tropeço com as palavras... Não é nada disso! Eu vou escrever sobre a natureza humana, sobre a tirana supremacia dos ditadores ideológicos, que oprimem as massas e que sufocam idéias de vanguarda, vou denunciar, vou criticar, vou gritar com um berro tão medonho que o sono dos vizinhos vai explodir no ar... quero algum carinho... algum, qualquer que seja . O carinho de uma idéia equilibrada, a palavra de alguém que me conheça e me convença que vale a pena continuar tentando... mas tentar o que?

    Meu herói sobe anônimo o tombadilho, com seu chapéu de aba larga, seu sobretudo fechado e seus óculos escuros. E é noite.

    Sua voz de aço corta o espaço quando ele pede, sem emoção, uma informação qualquer ao imediato... porque não choro? Tenho tudo pra chorar, até remorso.

    O peso nas costas vem aumentando dia a dia. Tenho que fazer exercícios, abrir braços e pernas para que o sangue navegue meu corpo, renovando todos os tecidos, fazer fluir de novo algum sentido morto ou acovardado.

    Vou escrever sobre sexo.

    No sexo me sinto hóspede de mulheres exóticas. Elas comandam meus desejos. Solto-me nelas, desnudo-as, lambo-lhes as costas untadas em calda de pêssego, refresco-me em uma cachoeira matutina dando risadas infantis, beijando-lhes as bocas, sem nenhuma estética de filme, sem nenhum compromisso com o tempo, sem nenhuma vergonha por elas serem ninfetas de poster de oficina.

    Vou escrever sobre a paz. A TV continua recebendo suas ondas e eu, distante e dentro da avenida, absurdo ainda, absorvo seus reclames e ruídos cintilantes, narcotizando ainda mais esse desejo. Quero a paz. Eu quero paz! Vou escrever que o homem é a melhor opção da natureza, que a compreensão é o clímax da sabedoria e que os povos devem procurar convergir, em um mundo que se direciona ao terceiro milênio... Eu quero vodka. Preciso de uma vodka! Meu sonho por uma vodka!

    Meu herói carrega um colt escondido sob o sobretudo, uma Walter ppk das antigas. Arma pequena, para pequenas intrigas e brigas de bar.

    A tela está cheia de letras com palavras fortes desenhando um bloco de idéias de chumbo. Não reconheço esse rosto que mostra feridas e uma beleza envelhecida. Sou apenas o que resta de mim, vazio de vontades.

    A TV saiu do ar e esvaziou meu mundinho.

    Vou pegar meu navio para Bengala.






Vito Cesar



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