Contando... Vito Cesar




Encontro com Dorian Gray



    Deu pro mundo.

    Arranhado de injustiça, consciência amolecida pela dureza das palavras de tantos, deu pro mundo, destrambelhou-se das iras interiores e jurou que nunca mais, nunquinha mesmo, iria deixar ninguém dizer coisas que não queira ouvir, mesmo as coisas certinhas. E talvez principalmente estas, palavrinhas ensaiadas, soluçõezinhas manjadas, nascidas dos livros de psicologia e da bíblia, recitadas por pais e mestres na hora da janta, nos domingos à tarde.

    Deu pro mundo porque acreditava que o mundo era dele, muito maior do que aquele mundinho de merda, pintado em verde e amarelo, com respostas medíocres demais para responder à desesperada ebulição do seu coração de leão.

    "O Retrato de Dorian Gray"! Bah! Que tolice! Onde já se viu um cara que tinha tudo, e além disso a juventude eternizada, deixar-se destruir assim, daquele jeito! Ele não! Se tivesse a sorte da graça de uma lenda, faria de tudo um pouco nessa vida! Que viagem, destruir o retrato!

    Arrumou coisas miúdas de emergência, escova de cabelo, pasta e escova de dentes, sabonete da Phebo, seu desodorante importado, algumas anotações de textos seus de várias épocas, escritos em folhas de caderno, guardanapos de restaurante, sua caneta de madeira e colocou tudo no fundo da mochila.

    Roupa só a do corpo.

    A mãe, vencida, no fundo da sala, sentada com os braços estendidos ao longo do corpo, mantinha um olhar vidrado no nada, olhos molhados deixando um fio de lágrimas realçar a ruga no canto direito da boca.

    Mãe de merda! Uma frustrada! Deixou-se morrer por dentro enquanto a vida passava bonitinha, cheia de ziriguidum, lá no meio da rua. Mãe maluca! Deixava a porta da rua fechada!

    Ele não. Ele era jovem e o rebuliço das coisas que não via, mas que sentia e que estavam num longe/perto instigante, o deixavam alucinado de desejo físico.

    Ele queria aquilo que não sabia. Ele queria ser aquele outro que não era, num mundo que certamente o caberia!

    ... Dorian Gray... Que se rasgasse os livros de mentiras cretinas sobre a natureza humana! Que se explodisse todas as salas onde mães chorassem sentadas com olhar de vidro!

    Iria redescobrir o carinho e a boa palavra nos exemplos da vida! Iria vasculhar as grandezas geográficas da terra e esgotá-las!

    Nenhum compromisso! Compromissos amarram as pernas, engordam e causam enfarte. Nenhum dinheiro! O dinheiro compra tudo, inclusive consciências livres!

    Emudeçam, disposições em contrário! Calassem vozes! Ele iria passar por aquela porta e esquecer sua história anônima, seu diploma de bacharel, seu gato malhado, outro grande sacana que nunca estava lá para as marolas da meia-noite.

    Iria transpor a cidade e adormecer em qualquer terreno baldio, embalado pelo sorriso sem estética de crianças passando, pelo ronco moroso do motor de algum caminhão que subisse uma ladeira, pelo zunido uniforme de algum avião riscado no céu. Ah! O respiro insuperável do ar molhado de terra, no meio da garoa!

    Deu pro mundo. Arrancou pela porta sem fecha-la atrás de si, caminhando num ritmo forte, como nos filmes americanos, em slow motion.

    Após alguns metros, sem nem saber porque razão, arriscou um olhar para trás.

    Ainda viu sua mãe na porta e a fumaça do cano do revolver.








Vito Cesar



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