Contando... Vito Cesar




OS EUS



    A noite da madruga estava estranhamente fria, como vem sendo estranhamente frias todas as noites de madrugadas recentes. Coisa de ozônio furado, eu acho.

    Chuvisca-não-chuvisca, aqui e ali, irritantemente, como se a natureza disputasse a sua "queda de braço" com a determinação do homem, e que nem era do homem, era do acaso orgânico, e que nem era isso, talvez uma calma particularmente sua, uma coerência de sistema...isso tudo querendo colocar em cheque a determinação da dupla de moços que perambulava por ela, naquele momento, uma determinação que nem era tão grande assim, apenas pretexto para mergulhar na noite, tagarelando um papo rasgado, com direito a risadas estridentes, e que nem era só pelo papo ou pelas risadas, era pela necessidade de caminhar e de falar de si mesmos, massageando os egos sobre recentes descobertas interiores, que de fato nem eram tantas, talvez apenas tontas fantasias, que não eram nem tão tontas, apenas fantasias, ou talvez ainda apenas meras teorias sobre o sei-lá-o-quê do tanto de ambos e de cada um.

    Coisas do acaso, coincidências ou curiosidade, segui esses dois estranhos por caminhos viciados da rua secundária, que deságua na praia, onde venta constante um vento calmo... o mar e o vento parecendo coisa de filme, o real imitando a sétima arte, onde o céu é dourado de azul indizível, onde uma rede entre dois coqueiros seria o sonho, o mesmo sonho que vi num filme do James Mason, onde ele fazia o papel de um pintor que morava numa casinha, numa cunha de praia e passava o tempo pintanto ninfetas...

    Estancaram a conversa miúda na frente do restaurante modesto, entraram e tomaram assento.

    Chamaram o garçon e pediram comida no meio de um comentário cultural qualquer, lembraram textos de grandes autores entre vagens e cenouras, entre a fumaça de molhos e carnes.

    - Ah, mas que vontade de escrever canções! - Que nada, cara! Perda de tempo...você tem que aprender a escrever roteiro pra bater palminha, pra empinar bundinha, pra fazer ôôô, isso aí...passa a ... Régi, ô Regi... cadê o Régi?

    Silêncio de Reginaldo, pela balbúrdia de tantas mesas. Reginaldo atarantado, com a caneta por trás da orelha direita... silêncio talvez para prestar atenção naquele cara que gritava seu nome no meio do salão, tão intimamente na frente de estranhos.

    - Régi!...

    Ele não podia sequer pretender não ter ouvido. Sorriu aquele seu sorriso de garçon e veio.

    - Reginaldo, meu filho... eu quero mais um bifinho, vagem e tomate e... Ah, purê de batata.... e tu aí, ô... segundo eu... que é que vai querer mais?

    Segundo eu contraiu os olhos como quem leva um choque.

    - Segundo eu é o caralho, porra! Vai te fuder!...

    - Deixa de conversa mole... tu é segundo eu mesmo...diz logo que o Régi tá esperando...

    - Se eu sou segundo eu, sabe o que você é? Eu sozinho, tá bom pra tu?

    Eu sozinho olhou para o espaço, saboreou as palavras e deu um risinho de aprovação cínico.

    Reginaldo, ali parado, apreciava o desenrolar da história, pacientemente. O restaurante ululava em falatórios agudos, graves, em copos brindando...

    Segundo eu viu a entrada exagerada que ainda restava na mesa.

    - Vamos dividir?

    Eu sozinho contra-argumenta.

    - Dividir porra nenhuma! Come o teu que eu como o meu.

    Segundo eu: - Então eu quero tudo, pimentão, cebola, batata, Ah... quero também arroz...

    Eu sozinho: - Arroz, cara? O alimento mais inútil do mundo?

    Segundo eu : - E daí? E tem mais, o arroz que não vier pra ele você acrescenta no meu...

    Reginaldo anotou tudo, pediu licença pra ir agilizar o pedido.

    Jantaram entre comentários engraçados, purês, batatas, piadas baratas sobre sexo e mulheres, arroz e pimentões cozidos.

    Reginaldo voltou mais tarde para pegar os pratos e talheres, mantendo aquele risinho maroto de sempre, um risinho cúmplice que irritava a ambos.

    Tomaram o cafezinho costumeiro e relaxaram.

    Eu sozinho: - ...e tu, diz aí cara, que anda fazendo?

    Segundo eu : - Tu quer mesmo saber? Então escuta só essa:

    O cisma do moderno invade, solene, a minha alma ancestral. Há decibéis suaves que me hipnotizam... mas... e as harpas? E as uvas? Não há mais poesia em Roma incendiada, só a crueza da Roma incendiada, a nudez dos corpos incinerados... Não há mais poesia na loucura dos Neros, só a certeza da loucura dos Neros, provocada pela impregnação por chumbo...não há mais poesia em odiar a loucura dos Neros...

    Eu sozinho solta uma insustentável gargalhada, bate com as mãos sobre a mesa:

    - Impregnação por chumbo, cara? De onde você tirou essa!!! - Você não sabia? Na Roma antiga todo o sistema de águas palaciano era feito por encanação de chumbo, cara! Não se conhecia outros metais pra encanar a água! Isso apenas para o palácio real, ou imperial... o que seja... uma regalia apenas para os nobres. Vai daí que se imagina que a tão famosa loucura da família imperial seria pela impregnação por chumbo, pela sulfatação da água... sei lá...isso lhes tirava o senso!

    - E daí, cara? Que porra tem a ver isso, com a poesia avacalhada?

    - Não tá bom?

    - Não é isso, cara! Tá tudo legal, mas tira essa de impregnação por chumbo, tá?

    - Deixa eu continuar...

    ... tenho medo de ver a história e os homens com meus olhos de Raios X... enlouqueço quando me batem à porta, me trazem fichas, me contam dores, quando dirijo um carro, quando paro em sinais... tenho que comer, tomar banho, tenho sono, enxergo mal... não há mais poesia em se dizer nada, em se pensar nada... às favas os mecanismos normais de entendimento!

    Tu me entendes? Eu te entendo.

    Não sei bem onde vou, ou sequer porque vou, só sei...

    - Pera aí, meu irmão: Isso aí é Zé Régio, tira isso daí loguinho! Que que é isso, você pirou?

    - Que mané pirou, o que, bicho... todo mundo plagia todo mundo a toda hora e só porque eu usei o Régio, um pedacinho só, você vem com essa moral toda pra cima de mim?

    Eu sozinho, agora assumindo um ar solene, arruma-se na mesa, levantando a mão direita a meia altura. Segundo eu sabe que, nessas horas, ele tem o poder de fazer parar o tempo, silenciar o mundo.

    - Meu querido: Não importa quem está fazendo o quê.

    Não interessa quem comeu quem, morô?

    Tudo se baseia no PRINCÍPIO... de uma postura ética...aí é que a liberdade pode explodir em toda a sua plenitude!

    - Mas cara, um pedacinho só... um Reginho...

    - Ai, ai, ai, ai, ai.... por isso que tu é o segundo eu...e eu acho que tô fazendo um trabalho ruim... tenho que melhorar mais...

    Segundo eu mexe-se na cadeira, penteia os cabelos com os dedos.

    - Você tá querendo dizer o quê? Que faz a minha cabeça, é?

    - Bicho... você tem que capturar a sua própria idéia...

    São muito raros os momentos de beleza, e é por isso que nós somos um tipo de gente diferente... nós temos idéias, nós vemos onde o normal das pessoas não vê nada... a beleza deve ser capturada no contrapé do seu movimento... leveza... do-in do respiro do ar que entra nos pulmões... o slow motion do Peckimpah na tela grande, sacou?... onde o movimento do todo dignifica o simples do gesto, mesmo bruto, como na queda do cowboy depois do tiro no peito, como no sangue que voa pelo espaço no murro no queixo...como Van Damme saltando no ar, abrindo a escala perfeita, sem gravidades... como o casal que corre na praia, um para o outro antes do the end... sacou... veja o Caetano: Qual será o Egito que me esconde e me afasta do futuro... sacou? Esses caras viram alguma coisa e bolaram uma visão única, uma visão só sua, bicho!... Sem essa de repetir o Régio, cara! Repete você mesmo, mas não repete alguma coisa de alguém, brother... a poesia das coisas é definitiva mas tem uma tradução que só é poética se vista de uma forma original e...

    - Tá bom... tá bom... sem Zé Régio e sem mais sermão... Você cortou o meu barato. Definitivamente, cara, eu não gosto de mostrar nada pra você... puta que pariu!

    - E você pensa que eu gosto disso? Sabe lá você porque eu parei de escrever? O quanto isso me dói? Eu não sou cínico e não estou dando a mínima para a produção que vem sendo feita por aí, produção literária barata e sem série. Eu digo essas coisas a você porque são para você... você é muito bom, cara, pra ficar aí, viajando na maionese...Eu fico vendo cenas, bicho, cenas inevitáveis, idéias pra textos que passam pela minha cabeça, em cima de coisas comuns, releituras de coisas corriqueiras, em cores, tudo em 70 mm... o close up dos olhos dos caras do meio da rua, o zoom da lente se afastando lentamente, fundo preto por trás... venho, venho, venho, o rosto ganhando a tela do juízo e revelando um sorriso qualquer na multidão( falsamente tímido) e fico imaginando qual será o sentimento! A iluminação perfeita, uma silhueta que passa aleatória... um discurso mudo!

    - Já tô vendo uma cena comum...

    Eu chego na tua casa, sentamos em poltronas cenográficas, você de bermuda, pés no chão, tua mulher lá dentro com seus afazeres, a mesinha cenográfica no centro da sala... acendo um cigarro e procuro um cinzeiro cenográfico, volto a sentar e cruzo as pernas, balanço o pé pendente... nas mãos tenho folhas e mais folhas de coisas escritas... não digo nada...Você ri disso e compreende que teremos mais uma daquelas sessões intermináveis de conversa jogada fora, 90% poesia, 7% piadas,2% palavrões carinhosos...1% de silêncio...

    - ... é, mais uma vez você negará três vezes, antes que o galo cante, que aprendeu alguma coisa comigo (e eu também)... A Ana entra na sala cenográfica e você se levanta, enorme, a beija na face maquiada, brinca com ela dizendo que ela já pode voltar pra cozinha cenográfica, que é o seu lugar, ela ri, te dá um beijo no rosto, você pergunta pelos ovários estropiados dela, diz pra ela que quer falar com ela sobre um novo amor que você tem, porque só ela sabe escutar essas asneiras tuas...pergunta pra ela se ela acha que vale a pena amar primeiro e gozar depois...

    -... aí eu volto a perguntar, será que vale a pena gozar primeiro, amar e apaixonar? Tudo num mesmo acorde maior... agudos da Minnie Ripperton: "Loving you is easy ‘couse you’re beautifull... making love with you, is all that I want to do..." Ela ri aquele risinho amarelinho que só ela tem... um riso sábio... e deixa o litro de Coca Cola cenográfica sobre a mesinha de centro... e sai de cena... Luzes morrendo...fecha o pano...

    O discurso de ambos esbarra no vazio do tempo, na descoordenação dos gestos das mãos, nos risos acanhados.

    Deveriam sair dali imediatamente, pegar o carro, contar piadas sujas...

    Estava por perto e olhei esses dois caras tão íntimos, com jeito de pai.

    Pedi a Reginaldo pra trazer a minha conta, paguei e saí.

    Deixei pra trás algumas histórias que ainda deveriam estar rolando entre eles, mas que eu já conhecia. Me reconheci neles.

    Do lado de fora ainda ventava e meus cabelos esvoaçaram. Fechei os olhos me imaginando no tombadilho de alguma caravela.

    No panorama visto da praia, o Recife me parece muito mais bonito que um filme americano. A avenida Boa Viagem era a coisa mais moderna que meus olhos de há trinta anos já haviam avistado, com seus quiosques de palha de coqueiro, com sua pista larga, com suas areias planas, com suas marés que mudavam a cada quarta-feira, com aquele forte cheiro de sargaço que atualmente nem sinto mais, com seus arrecifes banguelas... Dali avistei o horizonte verdadeiro pela primeira vez e, nesses trinta anos, essa mesma e única paisagem jamais se tornou monótona. Não há tédio no horizonte da praia, há o horizonte e a certeza de haver um outro continente do outro lado, quase tangível.

    Ali da praia sou um homem do mundo, vizinho de todas as áfricas e europas, acima das cores das raças humanas... posso gritar e ter a sensação de ser ouvido dos outros lados.

    Caminhei até a praia, como meu pai fizera um dia, e segui pelo calçadão, do Maxime até o Hotel Boa Viagem, lentamente.

    Pensei no papo daqueles dois garotos, enquanto caminhava. Quanto preciosismo! Ao mesmo tempo era muito interessante perceber alguém ainda ético nesses brasis de hoje, ainda mais sendo tão jovens... passaram por mim dois sujeitos com pouco mais de meia idade. Um falava e gesticulava, o outro ouvia e aquiescia, talvez para não estimular mais o discurso, quem sabe fosse um velho companheiro, a quem tudo se permite...

    - Não tem jeito, não, meu velho!... a corrução começa na fila do ônibus...

    Ouvi aquilo como se fosse dito pra mim.

    Será que eu tinha entendido direito? ... há corrução na fila do ônibus? Ah! talvez estivesse falando dos "pára-quedistas" que aqui e ali passam à frente de outros, no terminal dos ônibus de subúrbio...Na minha experiência, eu diria que a corrução começa na fila do Banco, patrocinada pelo próprio Banco, pelo seu descaso proposital pelo correntista...tudo uma questão ângulo de visão... a fila do ônibus... a fila do Banco... isso considerando-se o dia a dia do cidadão comum, que aceita esse jogo corrupto, esse mesmo cidadão que elege grande parte dos ladrões das câmaras federais, esse mesmo cidadão que corta sinais vermelhos, que estaciona em fila dupla, que mata a mulher que o trai, em legítima defesa da honra, que vota porque ganhou óculos... é... fico com a impressão de que o cidadão é uma arma muito perigosa, quando em mãos erradas...

    Continuei caminhando e respirando fundo o ar de vento que vem da praia, para expurgar meus pensamentos... isso me atormentava, não conseguia evitar esse olhar de Raio X, essa coisa extremamente crítica que habitava em mim, que me fazia captar cada som e imagem que me cercava, tentando decifrar... Eu era Édipo com olhos astutos, julgava.

    Vi uma bela mulher passar, na calçada, do outro lado da avenida.

    De tênis e relógio preto, a prova d'água, bermuda colante, camisa de meia... os bicos dos peitos fingindo ter frio, caminhando compassada e meio rapidamente. Consultava o relógio periodicamente. Estava marcando o seu tempo, sua performance, por certo... Era uma dessas gostosonas que fazem o impossível para ficar em forma... pelo seu jeito era uma mulher resoluta, dessas que eu admiro e de quem tenho medo... e como era bela... parecida com sexo suado num lugar apertado...

    A sua imagem me cativava e eu a seguia, sem seguir, caminhando do meu lado da calçada, tentando marcar o seu ritmo no meu... e eu sorria.

    Ah! Mulheres! Como amei as mulheres!

    Mas agora, caminhando no vento, sozinho na avenida, braços abertos para o mar, não queria pensar nas mulheres, queria vomitá-las de mim...

    Mulher... mãe da vida, templo de orações silenciosas e orgasmo pleno, centro do desejo, interminável, eixo das canções, espelho onde nos vemos verdadeiros, paradoxo, lei daquilo que é divino, Shiva, lágrima bonita que se derrama, na solidão dos mitos...corte de faca, olhar de raio, rugido de leão... Ah!... minha boca...boca no seio, boca no sexo, boca na boca, velocidade, non sense lógico, virtude duvidosa, fêmea multifágica, fêmea medrosa, fêmea fêmea ...dor de cabeça, canção já composta, cheiro de bosta de vaca no campo, raiva do mundo, mundo do mundo, textura exata, insegurança... cio...coisa que castra, meu pau macio... ruidoso silêncio, farfalhar de véus, alumbramento, futilidade, clarividência, raízes no chão, desafio intelectual, provocação do limiar da juventude, imponderabilidade de gênio, incerteza, fera ferida, pedra no sapato... e o tempo? Desfiando rugas na pele cansada, beleza plena na virtude do sono, mentira verdadeira, verbo mais que perfeito, enganação, decisão, indecisão, alta pressão... alumbramento...

    Ela perdeu-se numa rua secundária, explodindo minha fascinação.

    Enquanto andava, no slow motion do querer, tantas outras coisas passavam em 70 mm, no meu juízo.

    Haveria alguma coisa escrita na borda do infinito?... algo que me diga ser, o meu caminho, o de descobrir interiores, desembaraçando as linhas, desbaratando receios escuros?

    No mundo, haveria uma puta vigiando as esquinas dos homens, uma missa estaria sendo rezada por um vigário bem jovem a portais abertos, haveria um julgamento em andamento, um roubo, um estupro, uma morte... uma criança estaria nascendo... uma centena estaria morrendo... haveria melodias pairando no ar, uma voz encantando poucos ouvintes, um latido no escuro, um chorar de criança... um murro no estômago, no terreno baldio, uma mão se estendendo, um beijo apaixonado de silhuetas distantes, um apelo de alguém que sofria, água corrente de algum riacho distante... Haveria o imponderável do possível, o impossível que pondera, haveria um dissídio de classes, uma bomba a explodir, uma louca na sala de espera de algum manicômio, haveria o bem e o mal a se confundir no seu todo... um espasmo de dor, um desmaio, um lacaio atônito, uma besta e um tolo... haveria momentos risíveis, palavras à toa... a espera infrutífera de uma dor que não doa, haveria infinitos, com seres errantes... haveria um aplauso, um desejo, uma mentira e um tombo... um enterro, uma ferida que não cicatriza, nudez e assombro... um trabalho a fazer, uma planta nascendo, um acerto de contas, um vivente existindo... haveria alívios, pela hora exata de comer a comida, de gozar-se no sexo, de ver a chuva caindo, uma porta batendo... a vergonha e o muro... haveria doenças e curas, alguém maltratando a loucura de alguém... haveria um plágio de vida, um poema, um risco de palavra em algum papel vagabundo, um avião aterrando, uma ordem, um míssil...

    Passei um tempo comigo.

    Cheguei no ponto desejado, caminhei as mesmas velhas passadas até o AP. Desnudei os panos, limpei o corpo e adormeci criança.

    Acordei na madruga, com disposição de bicho. Tudo se renovava e eu fiquei imaginando que incrível o repouso, fazendo com que eu quisesse coisas que não queria, por exemplo, sair à rua, naquela hora. Peguei o carro e dirigi até o Pina. Estacionei num ponto estratégico e segui a pé até uma gafieira que era moda para os grã-finos... gostava de ir até lá, vez em quando, para olhar pra cara deles.

    Aí, um crioulo vinha com toda a sua majestade, desfilando pela rua, noite alta, céu risonho, vestido em seu terno de linho branco (caricatura? Não, era coisa séria), sapato branco, envernizado recentemente, sorriso de marfim no meio da cara.

    Entrou na gafieira, enquanto rolava um som de ficha, daquelas que mais parecem penteadeira de puta de filme americano, cores berrantes, botõezinhos que piscam... E lá vinha ele, gingando seus passos lentos entre as mesas, olhando todo mundo de cima do seu corpo alto e magro... pediu ao garçom algumas fichas, foi até a máquina e colocou logo cinco fichas seguidas... cinco sambas, partidão...Aí, quando começou a tocar o primeiro samba, o crioulo saltou como um gato, no meio do salão... começou a sambar bem devagarinho, como quem não quer nada, coisa bem simples, coisa que qualquer sujeito poderia fazer... no seu rosto um risinho maroto...

    Aí, o samba começou a esquentar. O surdão porreteava seu compasso mais rápido, o tamborim repicava pedindo mais, todos os instrumentos de percussão se superando num ritmo frenético... o crioulo lá, sem perder a linha. Sambava com divindade, sambava como um atleta, os pés repicando no chão, quase sem ninguém mais ver, podia se dizer que sambava no ar, nos quadris o rebolado onipresente, seus braços, como os de um maestro canhestro, regiam o ar e desciam até a cintura ... e o sambão seguia sozinho com ele, porque, a essas alturas, todos os dançarinos menos dotados tinham voltado às suas mesas, algo frustrados mas seguindo o crioulo com os olhos, maravilhados.

    E o Deus Negro sambava e sambava, quem sabe no íntimo pedindo aplausos... e o ritmo acelerava, e o suor descia-lhe o rosto, molhando o sorriso de marfim, que não se apagava... e fazia evoluções, ora mestre-sala, ora malandro, ora qualquer coisa maravilhosa, que todos começavam admirar.

    Aí, sim. Vieram os aplausos, os apupos e tudo o mais que vem, depois do samba acabado. Alguns o convidavam para beber um trago, outros falavam de samba... a todos atendia com explicações vagas. O ambiente seguia perfeito e algumas mulheres começavam a sonhar coisas de sexo...

    Nova ficha, novo samba...De repente, um estampido pegou o crioulo no meio do passo, no contratempo do bumbo... só ouviu o barulho... olhou espantado o paletó de linho e dele brotava um vermelho, bem no meio do poço da vida... sorriso ainda no rosto, rodou o olhar entre todos ... talvez tivesse visto apenas o pisco da boca de ferro ... um fogo, de dentro, queimou bem baixinho e ele quase não sentia... e foi crescendo, crescendo, o fogo e o vermelho, no pano de linho...

    Sua boca secou, no trismo do medo... um frio de inverno tomou conta do corpo, rompendo o segredo do grito contido... a boca secou, com sede de água, com dente cravado, com prece velada... as dores no peito crescendo e tudo perdendo o sentido no olho molhado, na dor sem aviso... seu peso foi caindo, caindo, abrindo uma enorme bandeira branca de braços e pernas... seu corpo manchado pedia respiro. Não teve respiro. A luz apagou.

    Os araques pegaram o crioulo pelos pés, arrastaram para fora da gafieira, para fora da calçada, pra longe dos olhos covardes, revistaram seus bolsos e pegaram seus documentos.

    Parece que o crioulo se chamava João de Deus da Silva e era técnico de um laboratório de manipulação. Era o homem errado.

    Os araques fizeram o pacote ali mesmo e mandaram para o SVO... no relatório constava morte acidental por arma de fogo em conflito numa gafieira.

    (Abriu-se o inquérito).

    Meu primeiro sentimento foi o de absurdo. Normalmente a realidade não se encaixa nada bem, dentro de certos parâmetros habituais de convivência. Aquilo não era para ter acontecido e aí, nesse instante, percebi que nada havia mudado.

    Os desmandos que eu sempre acreditei terem sido fruto do regime militar ficaram cristalinamente esclarecidos no meu juízo... o desprezo pela vida humana era inerente do humano que habita em nós, senhores do absurdo... sempre houve... sempre haverá.

    Saí dali derrotado, mais uma vez, por um peso enorme, por um medo enorme da noite e de seus monstros.

    E a morte? Ela havia estado ali do meu lado! Poderia ter sido eu, ou algum amigo !

    No silêncio do meu quarto tentei me convencer que a morte não era nenhum mistério... era apenas um sono que a vida nos dava, para que fôssemos eternos. Imaginar que seríamos tornados em compostos elementares, a nos misturar com a terra e a nutrí-la, assim sendo absorvidos por outras vidas e nos perpetuarmos nela era uma idéia mais poética do que intelectual.

    No meio da noite, telefonei a um amigo querido e sonolento, pedindo que, quando morresse para todos os olhos, quando o meu cérebro e o meu coração não mais respondessem aos apelos e tentativas, não me entregasse ao ritual dos homens! Pedi que não deixasse que me manipulassem à sua maneira científica ou religiosa, pois abririam meu corpo para buscar razões, pois fariam coisas em meu nome que eu não aceitaria, invocariam divindades a me proteger num falso caminho qualquer... que não contasse a ninguém, não transparecesse tristezas, pois essas seriam desnecessárias... pedi que alegrasse seu coração, pegasse meu corpo e o deitasse na relva, bem distante do concreto de sonhos inacabados, que, um dia, também haviam sido meus... que ficasse ali, entre os elementais e os seus sentimentos, que deixasse a decomposição lenta me harmonizar em comunhão perfeita... e ia dizendo coisas tolas sobre a possibilidade de estar numa flor do futuro, na grama que se pisa... ele, gentilmente, aceitou a incumbência e pediu que o deixasse dormir em paz. Desligou o telefone no meio de uma fala minha qualquer.

    Acho que adormeci em paz pois não senti tremores e não tive sonhos.




Vito Cesar



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