O triângulo



    Certos locais são arrabaldes de cidades longínquas, lugarejos, pedaços de clarão plano no meio do desertificado do sertão, que no verão único, disponível, lembra a visão do que seria o mundo, no cataclismo final que povoa a mente de futurólogos clássicos.

    Seu esqueleto básico tem o arremedo da uma rua principal, abriga algum cidadão proeminente que se refugia de alguma coisa guardada e que fatalmente será prefeito, tendo sua casa como futura prefeitura, desde que a emancipação negociada politicamente com algum cacique com ligações federais venha a garantir votos honestos. Tem projeto de igreja católica em andamento, tem farmácia, um posto telefônico, tem a obra iniciada de um futuro Banco do Brasil, tem a falta de energia elétrica e algumas centenas de cidadãos quase a morrer de verminoses.

    Chuvas de invernos abençoados eventualmente fazem ressurgir a flora sertaneja, num verde estupendo, numa variedade de espécies cuja estética agarra a beleza pela alma... em certos lugarejos, que são arrabaldes, arremedos de cidades do sertão.
    Não existem no mapa, sua referência é alguma fazenda grande ou usina de cana.
    Na noite, a escuridão favorece um céu de estrelas inimagináveis e a luz de lampiões passeia no longe da visão dos homens, piscando, piscando...
    Pedro Plácido sentia assim, esse gosto amoroso pelo lugarejo que deixara há trinta anos, quando fora estudar na capital e de onde nunca mais voltara.
    Pedro estava voltando para uma visita rápida.
    Voltava por remorso, talvez, ou por uma crise de identidade que de quando em quando tomava a sua alma e o fazia chorar na madrugada estranha e ofuscante da cidade grande. Talvez estivesse convencido de que jamais faria parte dela, que se vestia em fantasias para o enganar.
    Também não poderia voltar para o lugarejo pois ele não mais o cabia, parecia-lhe muito menor, ainda mais atrasado, não tinha mais parentes ali, senão alguns amigos antigos a quem temia encontrar para não se assustar com suas figuras envelhecidas e para não ter que encarar a sua própria figura perdida no tempo, já que a cidade grande fazia parecer que o tempo corria lento, quase parado e que ele, Pedro Plácido, doutor de letras e palavras, de papéis e carimbos vistosos, ainda era tão jovem quanto seu pensamento. Estavam quase todos mortos, os antigos. Línguas contaram a Pedro sobre doenças estranhas que matavam os velhos, diarréias que matavam os novos, sobre a fome que matava a todos e ficou Pedro Plácido desconcertado pois, por pior que pudesse ser o seu encontro com antigos amigos, essas mortes atoa não se justificavam... O lugarejo continuava parado no tempo, com gentes morrendo das mesmas coisas...

    Noite. No centro geográfico do lugarejo, um ensaio de praça, abrigava, sob lona encerada, uma zabumba, um pandeiro, um triângulo e uma sanfona.
    Pedro Plácido ouviu a zoada da janela de um quartinho que alugara, um quartinho de primeiro andar que ficava sobre o posto de gasolina da beira da estrada. A zoada era fininha, infiltrou-se por entre as frestas da janela e roçou as orelhas de Pedro, um Pedro suado e sem camisa que tentava dormir, olhando o ventilador de teto dar as suas voltas. Aquilo coçou o juízo de Pedro... De onde vinha?
    Levantou-se a contragosto, abriu a janela e deixou uma lufada de vento morno carregar de vez, pra dentro do quartinho o som da pracinha, um som íntimo do qual Pedro trazia lembranças.
    Lavou o rosto e o torso, vestiu uma camisa de listras e desceu para a rua a passos desconfiados.
    Havia um improviso de mesas e cadeiras de madeirinha espalhadas ao redor da pracinha, num canto um enorme recipiente de isopor guardava barras de gelo e cervejas de lata.
    Sentou-se Pedro em uma das mesas e viajou o olhar no redor para ver se identificava alguma alma. Nada.
    Chamou um sujeito que parecia um garçom improvisado e pediu-lhe uma cerveja.
    A demora da cerveja permitiu a Pedro dar uma nova olhada na bandinha que tocava baiões antigos, bandinha afinada danada, todos marcando certinho o tempo, o ritmo... Entre os músicos, Pedro identificou aquele que tocava o triângulo. Era alguém de um passado distante, alguém de quem ele não se lembrava completamente mas que certamente não era dali, do povoado, do lugarejo aspirante a cidade.
    De onde seria? Não era um grande fisionomista mas aquele rosto, aquela máscara, já o havia impressionado em algum momento, em algum lugar... onde?
    O garçom chega com a cerveja gelada e Pedro o agarra pela manga da camisa e pergunta:
    - Meu amigo, quem é aquele sujeito que está tocando triângulo?
    - Sei não, dôtô... num é daqui não... veio de fora...
    - De fora de onde? De alguma cidade vizinha?
    -Sei não, dôtô... dizem que veio da cidade grande, sabe, da capitá!... sei não... ele não fala, não conversa, fica lá só tocando o triângulo... nunca ninguém nem ouviu a voz dele... o povo acha que ele é mudo... ou é doido... sei não dôtô... A memória de Pedro deu dez retrocessos e parou num ponto, um ponto brilhante onde a certeza faz presença e clareia os traços que se ligam, lembrou-se do homem a quem olhava com tanta curiosidade: Amaro Severo!

    Amaro Severo... brilhante estudante de Direito, conhecedor profundo de O Capital, líder estudantil, Presidente do Diretório da Faculdade de Direito, comandou inúmeras passeatas da estudantada aspirante a socialista, a quem Pedro apenas via de longe... grande ponta direita do time da faculdade, dava aulas particulares de literatura e filosofia para garantir alguns trocados e se manter dignamente na Casa do Estudante.
    Depois da formatura foi ser assessor de um deputado de oposição, escrevendo seus discursos e orientando correligionários sobre a postura política mais engajada do seu protetor.
    Conseguiu uma vaga em um grande escritório na capital, por indicação do seu deputado e, brilhantemente conduziu sua vida profissional, defendendo minorias e lutando contra a ditadura na sombra dos movimentos políticos de massa... Amaro Severo... Amargo mas justo, Severo mas coerente... uma grande marca, um grande sujeito... seus artigos nos jornais faziam tremer os alicerces do regime autoritário, suas entrevistas na televisão o levaram a ser conhecido nacionalmente como "aquele advogado nordestino...".
    Quiseram fazer de Amaro Severo um ícone político, propuseram-lhe apoio para candidatar-se a vereador... Teria aceitado? Nunca mais ouvira falar de Amaro, o Severo...
    Que mal haviam feito àquele homem para que, hoje, tivesse se tornado o farrapo que agora ele via... um olhar vazio e opaco, fixado num horizonte qualquer, os dentes trincados, cabelos grisalhos já querendo rarear numa cabeça grande e arredondada, camisa social encardida, faltando dois botões, entreaberta no peito, uma alpercata de couro e um jeans desbotado... Tocava o triângulo com uma precisão absurda, adivinhando qualquer mudança no andamento da música... não deslocava o olhar pra lugar nenhum... não contraía um músculo da face...
    Certamente era mais um daqueles torturados que desapareciam da cena pública repentinamente e que o tempo se encarregava apagar da memória geral...
    Pedro Plácido conhecia estórias estarrecedoras dos porões da ditadura... a tortura no pau-de-arara, sevícias, tortura psicológica, abusos... lembrava alguma coisa sobre uma ordem de prisão contra Amaro Severo no início dos anos 70, depois...

    Pedro sempre se colocara distante dessas questões político-sociais, institucionais... construíra sua carreira de advogado promissor, atuando em assuntos outros que não envolvessem discursos ético-situacionais, por assim dizer... era um advogado de madame, de eminências financeiras, de firmas poderosas, a quem ajudou a ganhar muito dinheiro, tendo ele mesmo ganho muito dinheiro, no vagar desse processo.
    Mantinha uma admiração silenciosa por Amaro Severo... por sua luta e coragem, pois nos fundos da sua alma de almofadinha, morava um pigmeu com consciência a quem, convenientemente mantinha adormecido.

    Naquele momento, diante daquele homem solitário, seu coração se encheu de uma mistura estranha, um sentimento de piedade, compaixão e admiração solenes... Tomou inúmeras cervejas, enquanto Amaro Severo tocava infalivelmente o seu triângulo.
    A retreta seguiu animada, todos os músicos marcando o ritmo com o instrumento e com o corpo, uma poeirinha começando a subir porque os casais também se animavam e começavam a dançar.
    Pedro Plácido já estava bêbado às duas horas da manhã.
    Continuava sentado e pedindo cerveja. Comemorava solitariamente o seu encontro com um pedaço da história política do seu estado, seu reencontro com a consciência e brindava Amaro Severo de longe, levantando a latinha de cerveja e desenhando um semicírculo no ar.
    Pedro resolveu saber, na fonte, o miudinho da história e ficou ali, esperando o fim da noitada.
    Aos poucos a noite ia ficando cansada e as pessoas iam ficando tardias e a cerveja ia acabando e o baião ia ficando lento, a alegria ia silenciando.
    Plenário vazio, música estancada, gado recolhido ao cerco e Pedro Plácido ainda sentado na sua cadeira, oscilando lentamente e esperando o aruma-arruma dos músicos guardando seus instrumentos, mantinha o olhar em Amaro Severo, que puxava uma bolsinha de couro de baixo da sua cadeira que, pelo formato, servia para acomodar o triângulo.

    Pedro levantou-se meio mole e foi caminhando na direção de Amaro, que aparentemente nem notava. Aproximou-se e parou a uns dois metros do homem:
    - Amaro Severo!...
    Parou a frase no ar, como se procurasse algum introdutório eloqüente para iniciar uma conversação elevada. Queria dizer alguma coisa, lembrar algum detalhe que o situasse historicamente em algum contexto, para que Amaro pudesse lembrar-se dele.
    - ... ... ... você não é Amaro Severo... que foi estudante de direito no fim dos anos 60... no Recife, lembra?... Diretório dos estudantes, passeatas...bem... aquelas coisas todas?
    Amaro, sem tirar os olhos daquilo que estava fazendo e sem nenhuma expressão, falou num tom grave, que era peculiar na sua voz e que, por si só, já respondia a Pedro Plácido todas as perguntas.
    - Não, meu amigo... não sou Amaro Severo da casa do estudante... sou Amaro do triângulo.
    - ... que que é isso, Amaro!... nem se você quisesse!... essa sua voz é inconfundível... levanta, homem... fala comigo!... ... acho que você não me conhece... naquela época eu não queria saber dessas coisas de política, sabe?... era muita conturbação na minha cabeça... choque com polícia não era bem um futuro promissor para um advogado iniciante... sei lá...
    - ... Pedro Plácido... eu sei quem você é...
    A lembrança do seu nome fez com que Pedro se sentisse elogiado. Amaro Severo lembrava-se dele!
    - ... você era o cara que nunca estava presente... tudo bem, tudo agora é passado... tudo, nada, nunca, sempre, passado, presente... nada disso interessa mais... o que foi feito, foi feito... o que deixamos de fazer é apenas uma questão de memória...

    Os companheiros músicos olhavam para Amaro com estranheza. Nunca ouviram Amaro dizer mais do que duas ou três palavras, eram matutos sem letras, companheiros musicais, gente simples... agora ouviam Amaro falar palavras que desconheciam com um estranho da cidade.
    Pedro, por sua vez, continuava de pé, com uma última latinha de cerveja na mão, oscilando sua leve embriaguez diante de todos.
    - Mas, Amaro! Agora eu penso diferente, com essa economia liberalizada, com a nova moeda...
    Amaro permaneceu olhando o gestual de Pedro Plácido, ouvindo suas elucubrações dissertivas, piscando os olhos calmamente. Interrompeu Pedro Plácido com gentileza.
    - Pedro.... olha ali.... aqueles dois postes...
    Apontou dois postes que estavam beirando calçada às costas de Pedro, fazendo com que esse rodopiasse lentamente e observasse os monólitos, titubeando quando em vez. - Estou vendo... São dois postes...
    - Apenas isso?
    - E o que mais? ... ...
    - Olha, Pedro... há pares de fios paralelos que partem de um para o outro... são um pentagrama, Pedro... Vê!... a Lua! A Lua por trás dos fios... A Lua, Pedro, em Sol Maior! Música!
    - A lua em Sol...
    - É isso, meu amigo!...
    Amaro Severo termina de guardar seus pertences, aperta a mão insegura de Pedro, dá as costas e vai embora.
    Pedro Plácido, no meio da praça, na brisa morna, olhava os postes:

    - Mas que diabos é um Pentagrama?...







Vito Cesar

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