Contando... Vito Cesar




Meu amor



    Meu amor me disse não.

    -Mas porque, meu amor?
    - Porque chega.
    - Chega de que?
    - Não sou mulher de ficar dependendo de sentimento de homem.
    - Como é que é?
    - Isso mesmo que você ouviu.

    Peguei meu amor pelos braços e forcei meu olhar nos olhos dela.

    - Olha pra mim.... olha!
    - Não quero...
    - Mas como é que você me diz uma coisas dessas, assim sem mais nem menos?
    - É o que eu tinha que dizer há muito tempo...
    - E porque nunca disse nada?
    - ... acho que eu sou uma bobona...

    Meu amor tem a beleza de uma guerrilheira, seus olhos são tão expressivos que quase nunca necessita me dizer coisas, eu já as sei todas. Se fosse uma tela, seria uma pintura futurista, meio mulher, meio-bicho, um bicho de olhos amendoados e cintilantes. Se fosse uma música, seria bossa-nova, o violão de João Gilberto, a garota de cabelos lisos como nunca vi, olhar snob de quem nada quer... Meu amor chora por qualquer bobagem romântica e estava chorando naquela hora.

    - Meu amor, o que eu posso dizer? Não gosta da minha brincadeira? Não quer mais as minhas palavras?
    - As suas palavras nunca dizem nada...
    - Mas dizer o quê, meu amor?
    - Que gosta de mim, oras!
    - Mas você sabe que eu gosto...
    - Não sei de nada... você vive me dando um "chega pra lá"...

    Meu amor tem um riso aberto, todos os seus dentes perfeitos se perfilam e compoem a mais linda beleza de mulher que meus olhos já entenderam.

    - Eu sou muito brigona...
    - Sei disso...
    - Eu sou uma chata...
    - Sei disso...
    - Quero tudo na mesma intensidade em que eu dou...
    - Eu sei disso e sei também que eu sou eu, sabe? Um eu assim, digamos , diferente do seu, que também tem sua intensidade, também deseja, essas coisas, né?
    - Você nunca me diz que me ama...
    - (ai, meu Deus do céu!)... mas, meu amor, será que eu preciso dizer que te amo? Se eu não gostasse de você você acha que eu estaria perdendo o meu tempo...
    - Tá vendo... perdendo o seu tempo... "se eu não gostasse"... tá vendo?
    - Você está brincando comigo, não está?
    - Eu não...
    - Peraí, você tá me gozando...
    - Eu ? nunquinha !
    - Você sabe que, de repente, eu estou me sentindo mal com isso... estou até suado...
    - Porque? Isso acontece sempre na vida das pessoas, a gente gosta, o outro não, a gente fica se arrastando pelo outro, o outro não, daí a gente se toca com isso, o outro não... daí a gente se separa e vai cada um pro seu lado...
    - ... e o outro não!
    - Mas isso já está definido ... foi bom, sabe? Você foi muito importante pra mim...
    - (isso não está acontecendo!)
    - Pior é que está...

    Meu amor quando briga comigo, fica uma fera, enjaulada no próprio discurso... sua respiração fica rápida e ela finge que tenta se controlar...

    - Sabe de uma coisa?
    - Eu não...
    - Esse seu papo está me deixando cheio de ternura por você... sei lá... tô com vontade de te abraçar, abraçar... abraçar tanto, que vou fazer você sumir dentro do meu peito e te deixar lá dentro, aquecida, conhecendo o meu sentimento por você...
    - Tá vendo? "meu sentimento por você"... que sentimento é esse que você nunca dá nome? Diz, diz pra mim, olhando no meu olho... qual é o nome desse sentimento?
    - Você está radicalizando...
    - Eu?
    - Lógico, não foi você mesma que disse : vamos deixar rolar... se der muito bem, se não der não deu, sem heart fellings?...

    Meu amor não gosta de ser pega pela palavra... ela se debate diante do óbvio e essa atitude tão feminina nela, me faz sentir mais ainda essa ternura que me deixa meio doente por dentro, como se eu estivesse fisicamente todo inflamado. Dentro do corpo todo calor e dores. Fora do corpo um suor gelado...

    - Você extrapolou os limites...
    - Que limites? Você não demonstra nunca qual o limite das coisas... tão sem sal, sem emoção...
    - Você não está se dando conta de uma coisa?
    - De que?
    - Até agora, só quem chamou alguém de meu amor aqui fui eu... é, bebé! Só euzinho aqui, ó...
    - Grande coisa...
    - Como, "grande coisa!"...
    - Você é ateu e vive dizendo "meu deus do céu!", "minha nossa senhora!"... isso é apenas costume, meu filho ,apenas costume...
    - É , mas você sabe que quando eu digo "meu amor", pra mim, é como se eu estivesse dizendo sempre uma coisa nova, sempre a primeira vez?
    - Conversa...
    - Que conversa que nada, mulher! Só você se encaixou até hoje nesse jeito de falar meu...
    - Que jeito?
    - Ora... de dizer "meu amor"...(até acho uma frase ridícula, ora vejam só.... eu dizendo "meu amor"...) mas com você é diferente... eu acho que "meu amor" te cabe inteirinha dentro da minha emoção... foi feito pra você... EU INVENTEI PRA VOCÊ...
    - Você já notou que toda vez que eu te aperto um pouquinho você vem logo com essas coisas?
    - Que coisas, meu amor?
    - Faz poesia com cada coisinha que eu digo... daí eu caio direitinho, como uma bobona que sou...

    Meu amor se arruma no sofá, espalha o leque da saia nas almofadas e me olha. É um olhar tão doído que eu até sinto.

    - Você não é uma bobona...
    - Claro que sou... veja só: estou aqui ainda discutindo com você o sexo dos anjos... a coisa é essa, é simples... não deu, não deu... você me ajudou em muitas coisas mas foi só isso... não está vendo?
    - Mas, meu amor, que diabos nós estamos fazendo, discutindo isso? Isso aconteceu de repente, assim? Quando foi que você teve essa brilhante reflexão...
    - Eu não sou burra.... sou uma mulher forte, sabia? Já passei por isso tantas vezes (e ainda acho que vou passar) que mais uma ou menos uma não vai me matar...
    - Eu estou ficando cansado desse papo, sabia?
    - Eu já cansei faz muito tempo...
    - É assim que você quer? Quer dizer, de verdade?
    - É..
    - E o que é que eu faço com esse sentimento que cresceu mais ainda nesses últimos minutos?
    - Deixa ele quieto... você pode superar melhor do que eu...
    - Assim você não está facilitando as coisas...
    - E eu tenho que facilitar?
    - ... nada, nada... isso é apenas uma imagem que eu estou usando...
    - Ficou pensativo?
    - Fiquei, meu amor, isso lá fiquei... Você sabe o que está fazendo comigo?
    - E você sabe o que vem fazendo comigo?
    - ... ... ...
    - ... ... ...
    - ... mas não faz nem quinze minutos que você me disse, "eu te quero"!!
    - É. E faz também quinze minutos que você está me gozando, fazendo charminho, dizendo que é o gostoso...
    - Mas isso é uma brincadeira, droga! Você sabe que eu faço isso o tempo todo!
    - Porque é muito seguro , né?
    - Mas seguro de que, mulher?
    - De que eu estou apaixonada...
    - E quem pode estar seguro de alguma coisa nesse mundo de hoje? Com outras palavras: quem disse a você que eu estou seguro de que você está apaixonada por mim... ademais, apaixonada por mim é meio forte, né?
    - Forte? Forte? ... porque não? Eu posso olhar você de frente e dizer: "eu estou apaixonada por você!"... você, além de nunca ter dito nem sequer um décimo disso, nem sequer olha nos meus olhos, droga!
    - Você acha assim?
    - Acho.

    Meu amor tem uma qualidade que me deixa desnorteado.
    Ela tem uma voz forte e diz as coisas como quem crava uma estaca no coração.

    - Você está tonta...
    - Eu, tonta?
    - Sim, você bebeu alguma coisa...
    - E daí? Sempre bebi e nunca me arrependi do que fiz...
    - É isso.
    - Isso, o quê?
    - Você está cansada, não está?
    - Estou cansada sim, mas não é de bebida ou de não dormir não...
    - Pois bem... vá dormir, descansar um pouco... amanhã a gente volta a conversar ... - O que eu tinha pra dizer eu já disse, não vou voltar ao mesmo assunto... tudo que se tiver de decidir, vai ser agora...
    - ...
    - Pois é, meu amigo...
    - Nunca mais me chame de "meu amigo"! Da tua boca soa indecente, como quem quer distância...
    - Porque ficar bravo agora?
    - Mas isso parece loucura! Você está dizendo pra mim que me ama e quer me mandar embora... vê se tem lógica!
    - ... ... ...
    - Isso é ridículo... já amanheceu e eu estou aqui tentando acalmar essa fera...
    - Fera ferida, meu filho.... ferida... e tem mais uma coisinha... não precisa ficar todo melindroso comigo não, viu?
    - Melindroso?
    - ... é. Com essa cara de...
    - vamos pra cama?
    - Eu?... nunquinha, meu filho...
    - Então me dá um beijinho...
    - Tem até graça...
    - Olha que eu vou usar de força com você...
    - Você nunca usou força comigo, não vai ser agora...
    - Sem acordo?
    - Sem acordo.
    - É assim ? finito? Caput?
    - Assim mesmo...

    Meu amor cruza os braços sobre o colo e fica a espera do meu último movimento, minha última pedra . Afundei na poltrona da sala... o violão está numa estante muito alta e eu o vejo... vontade de tocar bossa-nova... de ter sono e sonhar.








Vito Cesar



Voltar